OS POSITIVOS

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estado da arte

Não é nada fácil (digo-o em tom de confissão, mas também como início de caracterização do meio), escrever estas notas metacríticas anuais, supostamente em tom de balancete, sem entrar na repetição obsessiva dos mesmos nomes e temas. E a dificuldade vem de um facto simples: de ano para ano, nada de novo se passa...
Domingos Isabelinho in Dossiê Bedeteca de Lisboa 2000-2009 2008

Apesar da facilidade para o recitar ad nauseam, não fomos nós que o dissemos.

Poderíamos usar um outro título, já tomado, que por diferentes razões nos serviria a introduções, Art Out of Time (*) Dan Nadel, "Art Out of Time: Unknown Comics Visionaries, 1900-1969" (2006). Cuidando que lhe lessem a carga satírica que adivinham, poderíamos, talvez, aproveitar tópicos cruzados para recordar um truque de magia particular da banda desenhada, a sua relação singular ao tempo. Capaz de qualquer um, lento, rápido, imóvel, supersónico, ontem, amanhã, séculos passados, futuros distantes, acelerar acções, retroceder eventos, separar-se em simultaneidades sobrepostas ou eras difusas, estes e outros artifícios no arsenal da banda desenhada são de tal modo assombrosos que nos ludibriam na evidência mais óbvia do tempo da BD: ele não existe. O tempo é uma ilusão do espaço, áreas fixas sobre as quais se distribuem elementos estáticos. Esta separa-o da restante família dos audiovisuais, por um lado, e dos literários do outro parentesco, por outro, todos capazes de diferentes ritmos, mas obrigados a uma linearidade de leitura absoluta para a sua concretização. A manipulação do espaço/tempo permite à BD uma independência dos sentidos da leitura, literal/metafórica, inclusive da sua progressão e até inversão. Sentido contrário, sinais dos tempos, um outro espaço a que se lhe parece ter acabado o seu tempo — e a grande ilusão de que depende esse passe de magia — é o tema do nosso último estado da arte: a arte da crítica aberta que desaparece da web. Hélas, roubaram-nos o melhor título.

Replicamos o nosso credo em BD — se não for lida, não é banda desenhada — à sua crítica: se ninguém a soube, será que houve? Nunca antes a crítica teve tantos canais ao seu dispor, mas esses são espaços imaginados, uma ilusão do nosso tempo. Apesar da multiplicidade de "gostos", comentários entusiásticos, manifestações sentidas, condenações violentas que surgem a uma velocidade extraordinária, o espaço da crítica online sume-se sem rasto das timelines dos telemóveis de cada um.

Entre redes sociais que formatam todas as ideias por igual para as submergir tão rapidamente como apareceram, e uma academia que cerra fileiras pela erudição despropositada a morrer ao kilo tão prolifera e trivial como os blurbs sociais, quem problematizará os quadradinhos aos peeps quando desligarmos luzes?

Apontamos assim à longevidade das nossas despedidas a todas-as-coisas-cómicas, qual cápsula do tempo enterrada nas interwebs para confrontação futura, e para acertar na sua isenção de contaminantes da nossa parte, contrariamente aos estados artísticos anteriores este não é da nossa pena. Colaboram nele duas personalidades reconhecidas da crítica nacional, Domingos Isabelinho e Pedro Moura, na forma de um diálogo com tradições tão longínquas à edificação de saber que podem retornar à filosofia clássica para comparações. E de comparações recuperadas da antiguidade webiana, as apresentações necessárias:

Foi aí, nos Encontros de Psicologia e Arte (*) "O Sentir e o Sentido", em que participei com Rui Zink e Nuno Artur Silva, que queimei as pontes com aqueles a quem chamei, muito mais tarde,(...) os bedófilos. Nessa noite saí do instituto e fui jantar, (...) tinha acabado de me auto-excluir da comunidade que perfilha e integra a subcultura. Assim foi. Assim ainda é. [...] Não foi a banda desenhada que ganhou a batalha cultural, foi a cultura que perdeu a batalha contra o dumbing down.
Domingos Isabelinho in "Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 8 - O Advento do Crítico e Fred" 20 out 2020

*) A temática do encontro dá-se a insinuações irónicas. Ao vosso cuidado, se nós as fizermos vencemos esta guerra :)

[Anónimo] Um estendal imenso de cultura! (...) mas LerBD é também um autêntico bloco de aço impenetrável, onde rapidamente somos tragados por entre diégeses e narratologias [...] no meio daquele emaranhado crítico que lembra algum do pior academismo. [Geraldes Lino] Admito que o caro anónimo possa ter alguma razão quando considera impenetrável os textos de Pedro Moura, apenas num aspecto: para se ler um texto necessário se torna estar ao nível cultural de quem escreve.
in "Postais de Viagem. Teresa Câmara Pestana (auto-edição) 15 jan 2008

Propusemos-lhes “um easter egg para gerações futuras que daqui a 90 anos farão arqueologia por BD nacional”, com o twist que esperam deste espaço do contra, afinal, problematizar é preciso. Ao debate que se segue foi-lhes imposto um formato específico, também esse destinado à depreensão de estados passados e futuros, transversal à discussão que se segue, a memória da banda desenhada. Pedimos-lhes que pensassem e discutissem BD exclusivamente por constrangimentos inerentes de redes sociais e/ou telemóvel. Não foi inocente o desafio feito: pretendíamos exasperar-vos pela sucessão de ideias interrompidas na brevidade da solução escolhida. A sorte caiu no Twitter, por contragolpe nas mensagens privadas onde a inexistência de limites de caracteres lhes foi mais favorável (*) Twitter sem limites nas mensagens privadas não o reabilita: se não as publicássemos, não existiam para o mundo. e quase nos descarrilou segundas leituras. Quase. Levaram-nos a melhor na arena acordada, contámos apenas com o aperto das circunstâncias para lhes sabotar o pensamento. No processo, conseguiram pelo positivo — pun intented — a aproximação em finalidades não declaradas que lhes tentámos negar: um discurso fluido. Enganam-se se nos imaginam contrariados na hipótese, antes validados no resultado: algures a meio da leitura que se segue serão tomados por uma familiaridade de cadências do vai-e-vem com semelhanças a antigos hábitos bloggianos. Com este registo, Pedro e Domingos transportam-nos do passado mais do que os seus temas, para um tempo diferente do das redes sociais, que incentivam e rapidamente deslembram na sua brevidade em circuito fechado, deixando os miúdos que se seguem – leitores, artistas, críticos e académicos in tha makin’ – na ignorância da História riscada.

Dessa, arrisquemos. A provocação inicial é nossa, a oportunidade to pick their brains com este slice of (a critics) life é agora vossa e da posteridade.

the question is not, can they reason? nor, can they talk?, but can they suffer?
a Bentham
in the end I came to the conclusion tha my whole outlook was so radically different from the mainstream media that it was a straight choice between being hated for what I am or loved for what I' not
a punk

O nosso THE ROADTRIP, magnum opus do underground nacional, tem mais de 10 anos. Reminiscências então: publicaram-se boas BDs nos últimos anos, mas terão os últimos anos sido bons para a BD? O cânone popular que se formou entre gentios finda-se habitualmente pelo virar do século, talvez as últimas décadas pudessem ter sido diferentes...

Estou afastado do meio e, por isso, não sou a pessoa indicada para responder. A sensação que tenho é que a promessa dos anos de 1990 ficou por cumprir, mas, quanto a isso, nem eu acredito em mim próprio. Com certeza que a minha visão muito parcial me engana. Quanto a The Roadtrip, o paradoxo que vejo na minha apreciação é este: o meu projecto crítico sempre pretendeu equiparar as exigências do desenho e da literatura (Eddie Campbell chamou-me "literary"). Jack Kirby ou Moebius, para dar dois exemplos do lado de lá e de cá do Atlântico, foram excelentes desenhadores que publicaram histórias inanes, logo, foram maus artistas, na minha óptica... Em The Roadtrip, pelo contrário aprecio os textos, a estrutura e a militância (não gosto nada do estereótipo dos habitantes da povoação, nem da forma ligeira como é tratado um assassinato), mas é mais pelo desenho que o livro me perde... vá-se lá perceber...

Eu diria que o caminho é como a metáfora bíblica. Existe uma estrada larga, relativamente direita, de alcatrão brilhante, iluminada e com bombas de gasolina, todas iguais, a convidar viagem em frente, sem temores. Por aí seguem trabalhos medíocres, refastelados em géneros e fórmulas empedernidas e repetidas, trabalho artístico que dá para o gasto e gáudio dos broncos. Mesmo que arraste problemas velhos de representações cansadas. Mas há ainda alguns que trilham sendeiros a pé mas livres, e são eles mesmos as chamas dos seus trajectos. São lidos por poucos. Há mais fortuna económica agora, pouca mas há, e fama. Mas aproxima-se o problema de monopólios e quem não os seguir é por ser "pobre", "mau" ou se fala mal, tem "dor de cotovelo"...

Não serei, desta vez por razões diferentes (ahem... elitista...) a pessoa indicada para dizer o seguinte, mas aí vai: também há aqueles que teimam em seguir a pé pela auto-estrada com o risco, mais do que certo, de serem atropelados. São os que pegam nos géneros e os manipulam à sua maneira tentando fazer alguma coisa desde dentro. Há o caso óbvio de Alan Moore (e já o comparei, em conversa com Dave McKean, que me achou um exagerado, a Stanley Kubrick; concordo, mas não é por sobrevalorizar Moore, é pelo oposto, porque se sobrevaloriza o outro...). Mas Moore nem sequer é o exemplo que mais aprecio (estou-me a marimbar para todo e qualquer tipo, com qualidade - Watchmen, claro - ou sem ela - tudo o resto? - de história de super-heróis). O exemplo que prefiro é o de Ed Brubaker que começou na autobiografia ou na autoficção e, hoje, é um excelente argumentista de séries negras. Infelizmente não lhe tenho seguido a carreira convenientemente, mas é a sensação com que fico depois de ler um par de coisas... e porque li o que ele publicou há muitos anos na Fantagraphics e na Drawn & Quarterly. Quanto aos outros: nunca pensei dizer isto, eu, que tanto gosto de John Porcellino, mas detesto o deskilling generalizado e a experimentação inconsequente. Não me refiro, obviamente, a Jochen Gerner, Eric Lambé, etc... mas lá está: ao dizer isto corro o risco de incorrer no "old fartismo"...

É inevitável todos darmos em old fart. A minha diatribe precisa de sal (e outros condimentos) pois afinal leio de tudo e aprecio muito coisas diversas. O que tenho pena é de ver celebrados caminhos banais como se fossem novos, e haver quem se vanglorie da sua própria ignorância. Como sabes, leio super-heróis, inclusive do Brubaker. E há autores dentro desse caldeirão a fazerem coisas diferentes e consequentes, como o Ales Kot, a Kelly Sue DeConnick, o Donny Cates... Mas concordo contigo: ainda pior são aproveitamentos meramente superficiais de abordagens, processos ou técnicas experimentais para criar "impressionismos" de Domingo. Abrir caminho tem de doer, e ser difícil e pouco consensual. Aliás, e NUNCA é o que fazes, bem pelo contrário, mas as acusações de "artsy fartsy" partem de quem nem sequer quer fazer o esforço de ver o que há de conquista formal, estética, textual e muito menos de se capacitar da argumentação necessária para separar o trigo do joio. É para iso que serve a crítica. Mas bradá-la no deserto, como sabemos, cansa.

Ontem falei de Ed Brubaker. Referia-me a isto: https://comics.org/issue/341372/, a isto: https://comics.org/issue/729789/ e, já agora, a isto: https://comics.org/issue/56832/


"An Accidental Death: Part One"

"The Fall"

"Dark Horse Presents"

Já O’Neill falava n’"o cri-cri da crítica", portanto, grilo ou cigarra, o acto crítico só pode ser um estridular no deserto. E hoje, mais do que nunca, a crítica tornou-se irrelevante porque tudo é igual a tudo. Dou a palavra a um dos meus críticos favoritos, o qual, infelizmente, pouco escreveu, Bruno Lecigne (tradução minha do original francês): “Havia antes uma verdadeira fronteira, uma verdadeira linha de demarcação, entre o que era “cultural” e o que não o era. Isso já não existe ou, em todo o caso, já não existe assim tanto. [...] Tudo o que era arte menor ou subcultura, como se dizia, integra-se hoje, sem dificuldade, numa produção e consumo globalizados de “bens culturais” ou de “conteúdos culturais”. [...] Há, portanto, uma abertura que é um pouco aquilo por que nos batemos, mas a contrapartida, que não foi prevista, é que tudo é igual a tudo. [...] Há uma moleza generalizada, tudo flutua, de barriga para cima, sem precisão, sem definição. Os grandes antagonismos já não existem. Como a banda desenhada ganhou um certo combate económico, é um sector rentável da indústria do livro, ganhou também o seu combate cultural, mas isso aconteceu no momento exacto em que essa noção já não faz sentido.”

Não sei como responder a isso. Depende dos dias. A crítica, tal como se prevê produzindo juízo de valor, está com efeito ausente da maior esfera pública. É preciso olhar para plataformas especializadas e cruzadas para encontrar coisas mais elaboradas e eficazes. Não sei se A bd ganhou esse espaço. Alguma, sim, mas não toda. Mas talvez se mantenha o problema do eclipse: há quem julgue que os exemplos mais conhecidos, populares, famosos e presentes pautem tudo ou sejam exemplos absolutos. E depois qualquer coisa fora disso é visto como marginal, inconsequente, desinteressante. E nota-se pouco como são esses exemplos mais radicais que movem toda a arte, pois obriga-a a recentrar-se. Os livros détournés (sobre os quais estou a editar um livro) do Ilan Manouach, por exemplo, são como o Pierre Menard, obrigando a reler as suas "vítimas" de novo, revelando novas dimensões, ou tornando-as mais claras, apesar de apagar, substituir ou sublinhar um qualquer signo/aspecto. É uma obra que critica as outras obras, como as melhores obras de arte. O crítico aqui é um observador.

Pela boca de Bruno Lecigne referia-me à crítica na comunicação social. A crítica universitária está bem viva e ainda bem. Apesar disso, se falarmos de "comics studies", ou alguma expressão semelhante noutras línguas (e não estou a ver nada de sequer semelhante em português) o caminho a percorrer ainda me parece longo. Digo isto porque o parente pobre que é a banda desenhada tem de pedir abrigo em departamentos já existentes, de línguas, a maior parte das vezes. Se estou afastado dos meios da banda desenhada, ainda o estou mais de um meio onde nunca entrei, o universitário. Como mero observador "de fora" não me parece que se afigure a curto ou médio prazo nenhuma evolução no sentido de uma autonomia dos estudos da banda desenhada em departamentos próprios. Isto porque há um desinvestimento evidente nas humanidades provocado pelo emagrecimento do Estado nas águas neoliberais em que navegamos. Lateralmente a isto chamo a atenção para uma subtileza da citação de Lecigne: quando ele diz que a banda desenhada ganhou o combate económico (em França, evidentemente) e, por isso, ganhou o combate cultural, quer dizer que equipara o valor monetário ao valor cultural. Isto é típico do capitalismo: só se produz o que dá dinheiro (de preferência muito), só se valoriza a mais-valia, só se adora o bezerro de ouro. Obras minoritárias como a de Ilan só têm dois caminhos: o esquecimento no meio "da BD" ou o reconhecimento nos meios da arte contemporânea. É isso que se chama "migrate to greener pastures". Mas nessa emigração vejo um problema: tem de haver uma transformação na materialidade da obra. Se pensar na arte conceptual ou neo, que hoje tudo é neo, tem de se "desmaterializar", por exemplo...

Esse é o preço do diabo. A validação de um meio só acontece se... é adaptada ao audiovisual, ganha um prémio literário, é discutido de forma separada por influencers dos media (e vivemos AGORA o bezerro de ouro), a crítica universitária mas que esquece a história da circulação material e social, transforma-se em Artworld Art desligando-se dos agentes usuais e mais "genuínos". Ou então vivem-se apenas nos últimos minutos de glória, com validade fugaz mas sempre com direito a pompas de artifício (mais fugazes ainda). E sempre sem cacau. Mas agora que as bolsas têm funcionado, os cursos se multiplicam, quando virá o impacto verdadeiramente cultural? Chegará?

Essa é a pergunta do milhão de dólares, e perdão pelo cliché. Como digo, tenho dificuldade em discutir uma situação que vejo desde fora. Corro o risco de fazer figura de tudólogo, animal detestável da nossa fauna opinadeira na comunicação social. Se seguirmos o que aconteceu com o cinema, dir-se-ia que é possível, na condição do ministro das finanças dar o seu aval. Não faço ideia do que se passa com os "film studies" noutros países, mas em Portugal suponho que estão integrados no conservatório. Onde integrar a banda desenhada com um departamento próprio? Na faculdade de belas artes?, na faculdade de letras? Mas tu, Pedro, que estiveste na Bélgica (país bastamente bedéfilo e bedófilo) podes falar sobre o que se passa na escola de S. Lucas. Ou então, e, se calhar, é mesmo o melhor, mudar o rumo à conversa para paragens mais interessantes, como por exemplo: o que é um bedófilo: como estudar a etologia da espécie?

Não penso que nos devamos preocupar em demasia com o que "se passa lá fora", qie nos empurra para um provincianismo apenas combatível de uma forma: trabalhar cada vez melhor independentemente dos resultados imediatos. É verdade que o diálogo tem de ser internacional, mas nem tudo está resolvido. Não existe, que eu saiba, um departamento de bd no mundo. Está sempre subsumido a uma área das humanidades ou das artes, ou então é corolário dos politécnicos ou cursos vocacionais/práticos, e aí grassa a ignorância da história, teoria e instrumentário específicos à banda desenhada. Cá também, sou testemunha. A atenção tem de ser dada à morfologia (qual a forma), a ecologia (qual o habitat), a biologia (como funciona) e depois a etiologia e a ontologia. E tenta-se fazê-lo. Só que o silêncio da recepção, sabes bem, desmoraliza. É uma situação corrente. Alguém pergunta, num contexto de conversa pública, "Qual é o melhor filme/música/bd/etc. do mundo?" Uma pessoa responde logo, como um arroto, "É X, óbvio!" Outra pessoa titubeia, "Bom, depende do contexto, e de que género estamos a falar. Além disso, temos de perceber qual a perspectiva e selecionar... etc." Quem arrancarão aplauso e a consideração de "Ah, sabe muito!"

Há uns anos, e é bem possível que isso ainda aconteça, os americanos achavam, mal, como lhes disse várias vezes, que na América (como eles dizem, como se fossem donos do continente) ninguém respeitava/respeita a banda desenhada enquanto que em França (leia-se, França e Bélgica) é que era; aí sim, a banda desenhada era/é vista como uma arte igual às outras. Peço desculpa por ter incorrido no mesmo erro. Erro esse que, como disse, em tempos denunciei.

Sim! Ainda ontem numa entrevista (*), uma autora britânica dizia - levada por uma dicotomia que criei sobre adaptações ao audiovisual de bandas desenhadas, mas alertando à redução imbecil - como no continente esta disciplina era respeitada como arte. E tanta gente me fala da Bélgica como o sonho tornado realidade... e eu pergunto, "onde?" É uma ilusão...

*) in "Lucy Sullivan, on 'Barking'" 17 maio 2021

Que os "comic studies" ou os putativos, como chamar?, "estudos sobre banda desenhada"? (acho que prefiro, simplesmente, "departamentos de banda desenhada") estejam integrados nas humanidades não vejo mal. O problema é, onde exactamente (idealmente de forma independente)? Fiz o curso de Pintura na ESBAL, hoje Faculdade de Belas Artes de Lisboa. O curso dividia-se em cadeiras teóricas (Geometria Descritiva, História da Arte, Teoria da Arte, Comunicação Visual, Antropologia Artística - e destaco o meu professor: Fernandes Dias, para quem fiz um trabalho sobre Jackson Pollock e os índios Navajo (Dine, mais propriamente) e Estética, claro) e cadeiras práticas (Modelos, Cerâmica, Gravura, Pintura, Desenho). O que me dizes descreve um pouco o que seria o tal departamento: Semiologia, Sociologia, Poética, Cultural Studies (mais uma sem tradução), Narratologia, História, e, porque não, cadeiras práticas sobre guião, desenho, planificação e paginação, letragem, etc... Mas, enfim, só lamento que o meu desafio sobre os bedófilos tenha ficado esquecido (agora a sério: seria o estudo da fã culture: neste momento, quase exclusivamente banda desenhada japonesa e cosplay a condizer que os outros, os antigos, vão morrendo).

O que é um bedófilo? Alguém que elege a banda desenhada como o seu "safe place" e plataforma de todas as fantasias, que defenderá de se desviar um grau do que projecta, seja por quem for, pois isso colocará em perigo toda a sua identidade, construída frágil e unilateralmente nessas mesmas ideias de fumo. Daí a raiva por qualquer mudança, versão, etc. É como quem grita "gostos não se discutem" por saberem, nos recônditos das suas mentes, que têm mau gosto.

Excelente descrição, Pedro, mas o reverso da medalha é que, dito com essa crueza, há que reconhecer que todos temos um pouco de bedófilo em nós (e o inglesismo "escapismo" é perfeitamente aplicável, mesmo a quem "escapa" na vanguarda). Lembras-te da "polémica" com a Teresa Câmara Pestana no teu blogue? Depois de eu dizer que tinha inventado o termo a Teresa reivindicou a coisa para si. Não faço ideia nem me interessa (também tenho a certeza de que fui eu e não Andrei Molotiu quem primeiro falou (projetou) na ideia de banda desenhada abstracta). O facto é que ele fez alguma coisa com isso e eu nada fiz, mas. mesmo assim, não deixo de ficar algo aborrecido. Neste caso do "bedófilo" não me chateia nada: talvez tenhamos inventado a coisa por separado. No meu caso tenho por testemunhas o Miguel Falcato e o Marcos Farrajota. Acho que estávamos a jantar no Parque Mayer (mas não juro) e a verve deve ter sido impulsionada por lubrificante de qualidade. Sem entrar em pormenores, a palavra surgiu graças ao caso Casa Pia. Seja como for, e para não me ficar pela histórieta, diria que a mentalidade de gueto da subcultura também é muito responsável pelo marasmo e tacanhez do meio. Apontam o dedo aos snobes sem olharem para o seu próprio snobismo trash (foi Art Spiegelman quem se classificou enquanto jovem como slob snob). É justo.

Intermission.

A minha proposta era todos apagarmos tudo o que aqui foi escrito nos comentários! Que tal?
in Comentário

Na primeira década de 2000 a web explodiu em blogs, e quase ou mais relevantes que os posts nestes são os arquivos estupidamente generosos de comentários que se acumulavam no final de cada. Há uma riqueza absoluta de intervenções, inclusive de pessoas que já abandonaram há muito este meio, como a Teresa Câmara Pestana que DI alude do blog do PM, outras, entretanto falecidas, como Geraldes Lino. A cessação gradual destes espaços abandonados privar-nos-á de um histórico irrepetível e a amnésia que grassa o meio online não é indiferente à (crítica de) BD que merecemos.

O pedro moura que apesar de terrivelmente palavroso mete as criticas de todos os outros num chinelo (excepto o domingos isabelinho que tb levou a critica bedéfila para uma área mt mais filosófica do que os comuns divulgadores de histórias).
Teresa Câmara Pestana em resposta a Geraldes Lino in "Fanzines, esses desconhecidos (XLI) - Gambuzine" 8 ago 2010

totally random sampling de comentário em blogs de terceiros

À la Dupond (vês?, também participo na trashalhada), diria ainda... o bedófilo é aquele que diz sistematicamente "adoro a bd X porque cresci com ela" mas isso quer dizer, "X recorda-me a minha infância, onde me sentia protegido deste mundo ambíguo e mutante, por isso quero sempre regressar a esse campo protegido". Raramente significa "este texto, Y ou Z, fez-me crescer enquanto pessoa, cidadão e indivíduo político ". Bom, agora vou (re)ler o meu "Chlorophylle"...

É difícil ser articulado neste meio (twit-er) mas queria apontar aos subtextos sexistas, racistas, imperialistas, fascistas, patriarcais, opressivos, pequeno-burgueses que pautam estas bandas desenhadas nostálgicas. Que, atenção!, continuo a ler com um prazer anal (cf. Freud clássico, naturalmente)... mas que quando são desmontados por essas mesmas razões, instila fúria em quem quer recusar compreender a sua existencia. Talvez seja um paradoxo ser anti-violência e gostar do Batman, ser anti-sexista e suar com as páginas do Crepax, ser anti-imperialista e apreciar Blake & Mortimer, ser anti-racista e reler o Fantasma... mas é aí que a fantasia (v. Zizek, óbvio!) tem o seu lugar. Já não me atrevo a dizer anti-burguesia porque estou implicadíssimo na comodificação de tudo (quem não estará, senão os verdadeiramente "marginais"?).

No fundo, a diferença entre uma visão bedófila e uma visão crítica é que esta segunda aprende ou esforça-se para entender que jamais algum trabalho cultural é cultural, social e politicamente neutro.

A minha abordagem do problema é diferente da tua. Diria que o caminho é outro, para chegar ao mesmo sítio. Onde está a diferença? Considero-me um crítico (cada vez mais um ex-crítico) jornalístico e, portanto, acima de tudo, valorativo, embora aspire ao rigor académico nunca tal fui como é bom de ver por uma carreira de professor de Geometria Descritiva no Ensino Secundário. Para seguir os teus exemplos: critico Batman pela violência?, sim, mas antes disso critico-o pelo simplismo evidenciado no maniqueísmo do "bons contra os maus" em que as personagens têm a espessura psicológica de uma batata (a simples ideia de herói causa-me comichão). Ou seja, para mim o problema é estético antes de ser ético, mas, ao mesmo tempo, tenho a convicção profunda de que estética e ética são inseparáveis e uma obra de arte com qualidade terá sempre de olhar para a complexidade do mundo e, portanto, será, também, inevitavelmente ética. Isto é algo assim como o problema da forma e do conteúdo: podemos separar as duas coisas na análise, mas, na realidade, são inseparáveis e, no final, há que reuni-las numa síntese. De resto, compreendo o que dizes sobre o lugar da fantasia (e ressalvo que o meu "olhar para a complexidade do mundo", acima, está muito longe de ser um manifesto naturalista ou realista; muito pobre seria a arte sem a fantasia, mas prefiro a palavra "imaginação" porque a outra ganhou as conotações que conhecemos). Seja como for, os exemplos que dás tendem a ficar lá atrás no tempo e o que era aceitável nesses tempos vai deixando de o ser agora e, espero, ainda mais no futuro (não leio livros de super-heróis, mas é possível que também eles, embora seja difícil mexer-lhes no cerne, vão mutando, nunca melhor dito, num sentido mais positivo...). É por isso que acho inaceitável o lugar-comum europeu (também português) do anti politicamente correcto.

Concordo contigo de que "imaginação" é uma melhor palavra, lembrando-me até de como o Baudelaire a considerava a "mãe das faculdades" (cito de cor). Mas a "fantasia" a que me refiro tem uma implicação psicológica precisa, e não tem a ver com escapismo. É mesmo a condição própria da realidade experienciada, a qual engloba aspectos negativos se for analisado... Dito isto, é precisamente por isso que devemos admitir os perigos que nos seduzem e estudar, debater, confrontar o "selvagem" que há em nós nesses gostos. E o maniqueísmo é tão sedutor... tão simples para compreender o mundo. Um soco para resolver os problemas. Quem me dera. A sua ausência, da análise, digo, leva às reacções reaccionárias, passo a expressão, de quem subitamente vislumbra essas dimensões mas não as quer admitir. E a defesa é ser anti-politicamente correcto. Um termo que nasceu para democratizar e empoderar os sem-fala e que se tornou arma de arremesso nas mãos e bocas de quem nem sequer quer começar a pensar.

Dizes que "fantasia" não tem a ver com escapismo, mas, em seguida, é exactamente o escapismo que descreves. Já não sei quem dizia que era interessante estudar para onde é que escapamos, Acrescento eu: é também interessante verificar como o escapismo é sexuado: macho alfa que tudo resolve para os meninos e amante romântica que ultrapassa todas as dificuldades para, no final, ser feliz, para as meninas. É claro que, ao escrever isto, tenho os action movies e as romcom na cabeça o que me leva a outra conclusão óbvia: a banda desenhada comercial sempre teve como público alvo um público massivamente masculino. E aqui entra em jogo o "deus" que cria as criaturas à sua imagem: a maneira como estes esquemas são colocados em prática mostram evidentemente quem detém o poder (o herói branco, jovem e musculado); quem é subalterno (o sidekick de outra etnia ou uma mulher a necessitar de resgate), quem é o vilão (quem quer que esteja em guerra com o Império numa altura determinada), etc... etc... a dar-te razão quanto a este lado obscuro da fantasia. É por estas e por outras que há algo no politicamente correcto que não entendo: acham que fazer um filme como Black Panther (que não vi, atenção, e, portanto, só posso intuir o que lá se passa) ou Wonder Woman resolve alguma coisa? É simplesmente inverter o problema para deixar tudo na mesma, digo...

Não é a mesma coisa e este espaço é limitado para descascar tudo. Assim como compreendo perfeitamente a pergunta que fazes em relação aos filmes indicados, que penso serem muito distintos e um falhando redondamente no seu propósito pressuposto (WW - feminismo) e outro 50-60% acerts (BP - racismo)..

Seja como for, o que pretendo dizer, no fundo, é nem aceitar que não há dimensões críticas na banda desenhada que queremos ler, lá está, acriticamente, mas tampouco deitar o bebé fora com a água do banho, como quando se faz uma crítica-chapéu de todo um género ou estilo por uma razão superficial ou de um elemento isolado, retirando a possibilidade de uma leitura fina/close reading mais afecta aos cultural studies clássicos...

Está então mais adequado/a à tua acepção de fantasia o racismo e a misoginia de Robert Crumb? É isso? Quanto ao que dizes, concordo plenamente que tudo é digno de ser criticado de forma séria. Deixo este escrito em suspenso com duas notas urgentes: acabo mesmo agora de comprar um livro que contém, nada mais nada menos do que duas páginas de banda desenhada de Francesco Clemente (muito interessantes e talvez as coloque no meu blogue) e tenho de ir a correr descalçar a bota de escrever, felizmente, uma breve nota, sobre uma história de um género que foi comercial há umas décadas (o western) e não tem, a meus olhos, grande coisa que a redima (vou-lhe atacar a misoginia, isso sim...).

"Não sei se se vai perceber o que lá está,
mas as duas páginas de 1979 são estas."

Bang! Bang!

Inter-missão.

Revolvido com os disparares, o moderador da conversa quebra a promessa de não-interferência e tenta pontarias. Dirigindo-se aos seus convidados, “escorrega à entrevista mal-disfarçada” para o contraditório:

Porquê BD, que bd, para quem...?
in Real Nós

Pedro Moura sucumbe e admite a insuficiência do espaço que já acusava: "o Twitter não permite ser-se claro". Somamos vitórias numa guerra que fizemos por perder, mas não lamentem, senhores: o que são os escritos de um crítico em banda desenhada se não uma tentativa permanente de resposta a essa questão? PM demorar-se-á a responder-nos ao longo de toda a sua carreira. Domingos Isabelinho resiste sem se constranger com o espaço, talvez até o admita. Atribuímos a diferença à diferença de expectativas que lhes conhecemos, e fecharemos delas adiante. Dessas, PM tentará elevar os comics, não terá tarefa fácil. DI já se desencantou desses, o que torna a sua resposta mais inesperada pela redenção admitida.

Francesco Clemente, mas também Anselm Kiefer ou Nicholas Africano para me ficar pelas estrelas da pintura dos anos de 1980. O que eles nos dizem sobre a banda desenhada é que esta arte pode ser um meio de expressão tão livre como qualquer outro. Nada tenho contra constrangimentos ou limites desde que os artistas os consigam superar pela inteligência ou desde que estes não sejam impeditivos da expressão completa e complexa do que significa ser-se humano. Se há coisa que detesto é o edulcoramento e a sacarina, numa palavra: o kitsch. Assim sendo, toda a liberdade para os artistas que façam banda desenhada porque "artistas de banda desenhada" é uma mera etiqueta comercial ou profissional. A banda desenhada já desapareceu dos quiosques e bem pode desaparecer das livrarias, mas vai emigrar para outras regiões, nem que sejam os catálogos das galerias de arte. estou certo disso. À pergunta, porquê a banda desenhada respondo com uma afirmação e com outra pergunta: porque a sucessão de tempos e/ou de espaços só pode ser dada através da fotografia no cinema e na fotonovela e esta não tem as qualidades do desenho; quanto à pergunta: porque não a banda desenhada?!...

Descobram as vossas respostas, nós temos a nossa, não partilhável. Deixamos aos que se seguem o enunciado desta arte: sucessão de tempos e/ou espaços, os constrangimentos destes, a migração a outras regiões, a seu tempo. E às eternidades o último truque de magia da relação particular do espaço e tempo na BD. Talvez o mais importante, também o mais dissimulado, poucos o reconhecem, menos o admitem. DI e PM abordam-no, indirectamente, numa curta troca de mensagens condensam-nos milhares de linhas tortas a advertir os teens por vir: banda desenhada, no espaço entre o tempo que não lhe damos e a expectativa que nos tem.

Terminou?

Não, mas o tempo falta.

OK, aguardo.

revenge of tha social