OS POSITIVOS

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Casos ilhados não nos têm suscitado reflexão mas há excepções, como o "Esquerda"nº1 março 2019, revista — anual, prometem em ano de eleições — impressa a cores num papel sem aspirações à posteridade que dificilmente sobreviverá ao seu manuseamento original. O formato exagerado ajudará ao mau trato e arquivo impossível, mas parte do seu apelo como artefacto é-nos indissociável dessa mesma volatilidade. Puro candy, impossível de lhe resistir: revista imprensa oversized e descartável por partidos radicais com nazis, marijuana, robots, $$$, tech, que termina com uma BD de laivos satíricos e pelo meio discute "o imbróglio das identidades"? (*) Exploramos essas aqui. Levaram-nos os €4 com o mesmo desembaraço que podiam gamar doces a crianças indefesas.

Nos P+ privilegiamos à arena do confronto de ideias um microcosmo específico da Cultura, a BD, e dentro dessa um nicho tão rarefeito que poucos sequer a registam no radar: banda desenhada em militância por causas sociais nas suas tendências mais minoritárias, não forçosamente no conteúdo declarado, necessariamente nas intenções maiores. Meio rasteiro e popular, acessível em todas as suas dimensões, cultura de massas pelas massas para as massas... firmemente sequestrada pela indústria do entretenimento: não é lamento, é base de trabalho.

Se entretenimento e vacuidade são o novo normal, a sua subversão só se torna mais fácil.
in Real Nós, par de semanas atrás.

Temos por isso uma curiosidade natural em compreender a relação que outros têm à BD (*) Se estamos a contextualizar: evitemos problematizar uma definição para "banda desenhada". Os nossos académicos e estudiosos destas andanças ainda não chegaram a um consenso pacífico que lhes permita avançar frente comum, pensem marxistas a discutir a validade das diferentes estirpes de marxismo que não apadrinham., primeiro e sobretudo como meio de expressão pessoal, mas só quando não lhes podermos desvincular uma carga ideológica comprometida à transformação da sociedade — habitualmente por aqui perdemos os artys em processo de revelação do próprio umbigo.

Da relação BE/BD infelizmente não vos podemos oferecer cronologia de nomes, datas, títulos, estamos nos antípodas de manter arquivos da propaganda de partidos e vcs estão a pensar JPP. Assumimos pressuposto que o Bloco faz um uso mais regular da ilustração à-lá-BD nos seus materiais de comunicação quando comparado aos restantes partidos a votos, uma percepção que alargamos às suas precedências: da Política XXI e UDP não temos memória mas do PSR recordamos igualmente essa verve de linha bedéfila, um estilo de ilustração que contrapomos a outros bonecos com um traço assumidamente menos cartoon — pensem murais PCTP/MRPP ou propaganda soviética vintage. Além de ilustração, cremos também já ter lido algumas pranchas completas nos seus suportes que, novamente, lamentamos: sem detalhes para consubstanciar. Socorremo-nos d’ "O Combate Ilustrado de 1986 a 2007" 2010 como exemplo rápido, coletânea de ilustrações do antigo jornal transformado revista transformado livro, no qual se listam autores como Alice Geirinhas, André Ruivo, João Fazenda, José Feitor, Richard Câmara, Pedro Zamith, Nuno Saraiva, Pedro Burgos, um João Paulo Cotrim que "resistia heroicamente, desencantando páginas inteiras de trabalhosas bêdês a uma multidão de fiéis seguidores dos seus projectos em quadradinhos" e "até o Relvas, autor de imortal ovelha negra".

O texto de introdução ao Combate permite-nos uma (re)leitura da influência da evolução tech sobre os dizeres que essas veiculam às luz de (des)materialismos históricos em digital que nos okupa por estas bandas. Registamos o relato de Jorge Silva, director de arte quando essa era algo que se entranhava à roupa que vestíamos:

Escultores gráficos digitalizando borrões e texturas para moldar volumes em virtuosos layers photoshópicos

Era o ano de 1989 e esta a rotina mensal das viagens de leva-texto e traz-boneco, batendo à porta dos ilustradores, que computador e e-mail nem em sonhos.

A produção gráfica do jornal tinha algo de heróico, noites passadas à volta de mesas de luz, colas de cera quente ou em spray venenoso, filetes autocolantes sempre a auto-descolar-se, e uma câmara escura que às quatro da manhã, no deserto casarão-sede do PSR da Rua da Palma, não era para espíritos fracos. Os pastéis de óleo, reinvenção sumptuosa dos anos 80, lambiam as primeiras folhas de papel A2, a sonhar futuras exposições a cores.

Os primeiros anos, ainda nos 70’s, foram de trevas gráficas, pirateando Mafaldas do Quino, cartoons do Wolinski e outros assim (...) justapondo-lhe heréticos comentários caseiros, punhos fechados e manifs página sim, página sim, infância iconográfica do trotskismo luso. A libertação levou o seu tempo e em Setembro de 86 o jornal inicia uma curiosa série de seis números de ilustração temática, baseada em fotografias e signos gráficos manipulados numa Repromaster, luxo asiático lá da casa.

Simultaneamente com a primeira geração de ilustradores d’O Independente, coqueluche gráfica de então, com a sua linha clara, tintas transparentes e palmeiras neo-coloniais, os ilustradores do Combate saturavam o papel de pastéis e acrílicos, a tinta da china era bem mais negra aqui, a figuração grotesca e a miséria quotidiana buliam com as boas consciências. Ilustração revolucionária, portanto.

Os anos de 94 a 98 foram de seca ilustrada, hipnotizado já pelos barbarismos tipográficos do império ianque, David Carson e tal. O novo-riquismo digital e um quilométrico arquivo de fotografias piratas faziam o resto.

Em Setembro de 1999 ressuscita[-se] a ilustração. O vermelho tipográfico, aquisição recente, deu aos novos ilustradores em trânsito do pincel para o computador o pretexto para se emanciparem da tralha linear, traços e riscos que já eram, banda desenhada te arrenego!, manipulando camadas digitais como os seus avoengos do século anterior faziam com papel vegetal, antes da banalíssima impressão offset nos lixar a todos.

Dos lixados nesta história poderíamos declarar uma "lógica dialéctica" que "associa a forma e o conteúdo do pensamento", na qual os meios decidem fins últimos e extrapolar a sina que espera o trotskismo luso na era do instagram. Esse, é todo um outro capítulo.

Antes, cruzamos referência e acrescentamos divulgação alheia para concluir de tech e o que fica à posteridade:

Desconheço se os critérios que presidiram à escolha das ilustrações e Bandas Desenhadas presentes foram apenas estéticos, ou ditados por questões mais pragmáticas, como a dificuldade de acesso a imagens com qualidade suficiente para reprodução.
in "O Combate Ilustrado" 3 maio 2010

...lamentando-se assim a não inclusão de outros autores como Filipe Abranches e José Carlos Fernandes, o qual nos conta da sua experiência na intersecção de estética e pragmatismo:

[JCF] "O director da LX Comics, que também movia cordelinhos noutras publicações, propôs-me que publicasse antes no Combate. Assim aconteceu com uma primeira BD, mas o mesmo já não aconteceu com a segunda. Foi recusada por Francisco Louçã, que não gostou que a dita BD brincasse com a figura de Lenin (esse Santo Homem!), embora a BD satirizasse também o capitalismo e o consumismo."
in "O Combate Ilustrado" 3 maio 2010

Da revista em mãos, barely, entre feminismos, economismos e identidades várias, pelo final recupera-se Fernando Relvas para uma história inédita a meias com Nina Govedarica. Tocou-nos a tal curiosidade, que não devemos à escolha da peça ou seus autores, mas à inclusão de banda desenhada no ramalhete de tópicos tratados que — obviamente — rapidamente damos por adquirido e depressa reclamamos: refugado para final de publicação, nos fait divers culturais enrolado em recensões de livros, eventos, recomendações de fecho de conversa…? Literalmente, igualmente a última nota na capa da revista, rodapé pequeno fim de página e, ofensa maior, ordenada depois dos contos literários.

Nosso julgamento primário e condenação sumária: peça tratada enquanto género, alheada do seu conteúdo. E dizemo-lo alheados do seu conteúdo — what…? — mas sentidos pela potencialidade da mesma para merecer dossier por direito próprio entre os demais, não renegada ao recheio da secção cultural.

Um balanço difícil, admitimos, demasiado cedo na revista a mesma é suspeita de instrumentalização doutrinária pela causa; demasiado tarde, esvaziada dessa interpretação e rendida (black &) white noise cultural. Either way, a nossa indiscrição não se perde em significações possíveis da sua leitura mas é-lhe anterior: no grau da intencionalidade que decide a inclusão e ordem de paginação. Ie, toda uma outra dialética (podemos?) à qual nos socorremos com mashup de cites retirados da segunda apresentação do Combate já referido atrás — destaques nossos — para ilustração:

Em alguns momentos, veio a lume o debate sobre o que prevalece num determinado artigo ilustrado: o texto ou a imagem? Ou mesmo sobre se prevalece um sobre a outra? É claro que, ao editarem-se apenas as ilustrações, se corre o risco de se resolver a dialéctica anterior num sentido que não é a nossa perspectiva.

Falam-nos de tensões entre partes de um todo que se guerreiam intestinamente e sentidos que se perdem ou ganham na revisão da história (re)escrita pelos seus vencedores. Ou, e se a metáfora se aguenta, terminado o combate:

A generosa produção deste livro dá nova vida aos originais em papel, revelando cores insuspeitas e texturas subtis que a pelintrice de outrora não permitiu.

Hum.

ao assalto