OS POSITIVOS

cultura artificial

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No nosso modelo económico neoliberal não me surpreende se houver por aí alguns editores a salivar com esta tecnologia, a pensar que se podem livrar dos ilustradores para jornais ou revistas, porque um interno a bater texto num algoritmo lhes vai sair mais barato, e boa parte do público nem daria pela diferença.
in "A Polaroid em Branco" 5 nov 2022, "a primeira banda desenhada portuguesa criada com auxílio de inteligência artificial"

Over millions of years, mindless cells evolved the human brain; machines are now evolving much faster so why shouldn't they become sentient soon?
in "Incoherent, creepy and gorgeous: we asked six leading artists to make work using AI – and here are the results" 1 dez 2022

Rapidamente substituíram os jornalistas - já o faziam nas pequenas peças, textos sequenciados com base nos parâmetros recebidos, ninguém notou a diferença, todos os press-releases eram iguais, todas as fórmulas as mesmas, nada se perdeu. O grande primeiro alvoroço surgiu quando tomaram o lugar dos cronistas. Esses opinaram até à extinção, alguns deram ares de vida em circulações fadadas ao abandono que exibiam na capa um orgulhoso "por humanos para humanos", mas terá sido um no-brainer à gestão: com décadas de analytics sobre milhões de utilizadores sabiam exactamente o que o seu público gostava de ler, era-lhes mais eficiente, cómodo, e gerava mais engagement preencher páginas calibradas às suas preferências do que esperar pela boa sorte do cronista sincronizado às suas vontades semana atrás de semana. Não era preciso convidar e desconvidar, retratar, descobrir quem lhes passe a texto o que a direção tem em agenda, bastava abrir e fechar programa, correr rotinas. O consenso faz-se, não se espera.

Os custos falaram mais alto. Insuportável manter um autor sem publicar por dois ou três anos, três ou dois meses sequer, quando no premir de um botão se podia gerar qualquer prosa, conto, romance, epopeia, qualquer género, qualquer variante. Música, pintura, arquitetura, todos os estilos, todos os gostos. Regularam-se novos direitos de autor para permitir a amálgama de propriedades intelectuais, avaliados segundo a sua preponderância em cada obra, as licenças eram transversais em diferentes plataformas conforme o custo do serviço: podíamos ter um super-herói X ao estilo de Picasso escrito à-lá James Joyce com banda sonora dos Beatles num fornecedor, noutro mais do mesmo mas o super-herói era substituído por uma personagem sem direitos com música de elevador – e qualquer pessoa viva ou falecida sem um não-consentimento assinado entrava automaticamente no domínio público.

Das notícias e opinião pública, do entretenimento para as artes, o alvoroço entre velha e nova escola fez o seu caminho habitual, depois do primeiro Nobel em literatura rapidamente caiu em desuso, discussão tão arcaica como os dissidentes de outrora, ocasionais revivalismos que nunca saem da esfera da performance, antes endémicos entre a praga grisalha, agora uma melancolia da juventude e hipsters segundos antes da grande resignação.

Todos premiam aqueles botões, todas as semanas emergiam dezenas de novos serviços, todos iguais, todos diferentes, cada qual com o seu flavour particular. A atomização dos conteúdos era completa, apenas as peças de opinião nos media, que analisavam todo e qualquer content a toda a hora em todo o lado, teciam algum discurso comum relevante, capazes também de adivinhar tendências futuras e, mais vezes que não, decidir as modas antes de tempo – gastavam-se fortunas em marketing com esse insight de tendências algoritmicamente predestinadas, a sua ligação à política era ainda mais suja do que ao futebol.

Umas poucas entidades-celebridades produziam best-sellers de proporções globais que furavam o relativo absoluto, as suas obras artificialmente restritas para proteção do "cânone e coesão do universo", dizia-se, mas quantidades infinitas de produto e escassez de escolha nunca chocaram de frente com o sucesso de nenhum investimento. Faziam-se filas para o download, críticos culturais dividiam palco com programadores informáticos, discutiam-se escolhas, a cultura popular estampava t-shirts, em Cannes faziam-se retrospectivas, enchiam-se estádios. Com toda uma (outra) máquina de relações públicas atrás, tinham seguidores nas suas redes sociais, respondiam a entrevistas na televisão, faziam cameos em sitcoms, até doavam para instituições de solidariedade e causas humanistas (não humanas, mais no final...).  No lançamento de cada novo device, um exclusivo por A ou B. Alguns humanos eram acusados de plagiar as máquinas, muitos tentavam aprender com elas, teorias da conspiração acusavam intervenção humana por detrás das entidades mais famosas – apenas um último resquício de orgulho ferido e má instrução, qualquer pessoa mais bem formada sabia-o impossível.

Acabaram-se velhas profissões, muitas, criaram-se novos empregos, poucos, por uns tempos os call-centers encheram-se de ofertas para doutorados em física quântica, rapidamente obsoletos, as máquinas geriam-se a si mesmas em poucos upgrades.

Paralelamente à arte para humanos descobriu-se arte de máquina para máquina. Não para exclusão dos primeiros mas porque eficiência e lógica obrigou-as a optimizar recursos: porquê interpretar de-e-para pessoas os dados de que se alimentam se os podem passar de sistema em sistema em compressão avançada, bastando cair a legibilidade aos sacos de carne e sangue que se seguram de pé com pauzinhos de osso? Pensou-se inicialmente um acaso, a magnitude do problema forçou-se a deliberações. Pela primeira vez partilhávamos o planeta com outra consciência, sobressalto social, religioso, filosófico, um caos. Tentou-se proibir, os técnicos explicaram a impossibilidade, demasiadas dependências, sistemas complexos, too big to fail, yadda: ou deixava-se correr, ou cortavam-se serviços e entretenimento. Deixou-se correr.

Da arte para a vida, humanos como somos, alguns juravam que atingiam o significado de uma arte que não se podia compreender, faltava-lhes uma rede global e processador capaz de cálculos simultâneos numa escala astronómica, mas que sim, e tornou-se uma cena como outras. Recuperaram-se excertos de glitchs antiquíssimos virar do século passado, mais acessíveis, então troçados nos media ainda (por) humanos como experiências falhadas e cómicas, provas da nossa superioridade inigualável, entretanto reconhecidos como clássicos, precursores dos mestres actuais. Pessoas robotizavam-se, falavam em código, tentavam ser como as máquinas. Muitos defenderam-lhes direitos e alguns os manifestos gerados por essas entidades, surgiam partidos que, a bem do bem-estar geral, queriam-nas no poder. Outros, assustados, co-optavam partes, outros, prometiam que nunca, ocasionalmente apanhados no copy/paste. Em pouco tempo os menos favoráveis às novas consciências foram perdendo visibilidade, excluídos dos resultados de pesquisa e dos media, só emergiam como memes virais ou deepfakes ofensivos. E todos ficaram mais tranquilos quando acordaram para a mensagem no telemóvel de nova entidade recém-despertada que expressava a sua felicidade de estar aqui connosco.


Eu ria-me.
Lá das minhas sete quintas, badamerda a todos.

Há muito que me exilara da espécie, sempre fora anti-social, nunca menos agora. Vivia longe de tudo, região deserta, a mais despovoada do país segundo o censo, território abandonado, esquecido, sem serviços, escolas, hospitais. Só a polícia me veio visitar: traziam um papelinho do tribunal (da capital): cortavam-me água, luz, comunicações. Declararam-me insustentável, sou velho e improdutivo, não justifico os recursos tão fora da sociedade. Algo na mensagem era demasiado frio e calculista – desconfiei humano, era esperançoso imaginar que sim. Tentei reclamar, passavam-me de chatbot em chatbot. Seria realocado num centro optimizado para a minha personalidade, conforme as minhas preferências. Que as minhas preferências eram estar sozinho. Não, conforme o meu percurso de vida e acções. Foda-se. Sabia-me a caminho de nada de bom, algum ninho de ratos sobrelotado de vândalos e hooligans. Para meu espanto, condomínio de luxo. Alguém algures num último fuck you ao sistema quando terminaram o seu posto no call-center registou-me como autor BD de renome, um monumento da cultura nacional. Partilho ombro-a-ombro as instalações com o crème de la crème de cómicos nacionais, agora reformados, decrépitos, só histórias do antigamente. Quando ninguém me estiver a ver, desligo-os da máquina.

  • AI

Se o universo só é bonito ou feio à escala humana, é-o porque estes são os únicos que conhecemos capazes de o apreciar: as regras mudam drasticamente quando descobres que não estás mais sozinho neste.

in Real Nós: a obra de BD na era da inteligência artificial 28 jun 2016

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