OS POSITIVOS

« o que é Cultura? »

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Pergunta Roger Scruton. Não totalmente coincidente à nossas inquietações, para que serve a cultura, mas próximo o suficiente para lhe encontrarmos caminhos a explorar. Exploremos.

“O conceito de cultura nasceu, inteiramente escudado, da cabeça de Johann Gottfried Herder, em meados do século XVIII, e tem estado envolvido em contendas desde então.” Então a nossa deixa, começamos do resumo ao resumo de Scruton, e ele começa da distinção entre Kultur como “sangue dum povo”, a “energia moral de uma sociedade”, e Zivilisation, camada funcional de costumes, leis, competências técnicas que diferentes culturas poderão partilhar entre si. Da primeira ramificaram duas grandes escolas: uma mais romântica e particularista, outra mais universal e clássica.

De românticos — entre os quais nomeia Hegel — e antropólogos, a cultura “molda a linguagem, a arte, a religião e a história, deixando a sua marca no mais ínfimo acontecimento”, essencialmente definido como o “conjunto de práticas e crenças que formam a identidade própria de uma tribo”, grupo, nação, etc.

Nos clássicos arrola Wilhelm von Humboldt, “o pai da universidade moderna” e cultura interpretada à letra: o cultivo deliberado de determinados saberes e práticas, a aprimorar e preservar, transmitindo-se à geração seguinte. Sem surpresas alista às suas fileiras Matthew Arnold cuja definição de cultura como “o que de melhor já foi pensado e dito” já fez várias paragens – pun!entre nós e a ele voltaremos pelo final.

Entre o crescimento indomado romântico ou cultivo refletido, “as duas concepções de cultura têm estado enredadas em controvérsia ao longo da era moderna” e dos seus escombros surge uma terceira definição, “mais fluída e menos visceral” que reflecte a nossa existência “desenraizada”, à qual “chamar-lhe-ei doravante” cultura popular. Atribuindo-lhe fundação a Raymond Williams e ao seu antielitismo por uma cultura alargada que incluísse artes populares e de entretenimento, Roger ancora esta terceira designação na procura de uma identidade.

Funny enough, hoje vamos saltar as coisas-que-fazem-pop e ocupamos-mos principalmente da distinção entre clássicos românticos. Da primeira, que a todos nos aparta:

A cultura é definida como algo que nos separa, uma ilha que somos ‘nós’ no oceano que são ‘eles’.
Roger Scruton in "A Cultura Moderna" 1998

Pólo oposto, a cultura universal:

O individuo universal é aquele que vê a Humanidade como um todo, que conhece a arte e literatura de outros povos e sente uma afinidade por todas as formas e aspirações superiores da vida humana.
Roger Scruton in "A Cultura Moderna" 1998

Infelizmente — mas adiando considerações em elites liberais vs rednecks (*) e todos aqueles que a globalização deixou para trás para próxima ocasião —

*) Fora insultos possíveis, cracker, hillbilly, white trash, "a derogatory term chiefly, but not exclusively, applied to white Americans perceived to be crass and unsophisticated, closely associated with rural whites of the Southern United States", recordamos que o termo emerge de uma certa workin' class:

The term characterized farmers having a red neck caused by sunburn from hours working in the fields. (...) The same group was also often called the "wool hat boys" (for they opposed the rich men, who wore expensive silk hats).
"Redneck" in Wikipedia nov 2020

E se estamos de chapéus:

Hats protected that wearer's head from the sun, but also provided psychological protection by shading the face from close scrutiny.
"Redneck" in Wikipedia nov 2020

Hint hint.

— a cultura clássica exige preço de admissão e hierarquia de valores,

Nem todos a possuem, já que nem todos têm o ócio, a disposição ou a capacidade de aprender o que é necessário. Mesmo entre as pessoas cultivadas, algumas são mais cultivadas do que outras.
Roger Scruton in "A Cultura Moderna" 1998

– quando, inversamente, na concepção orgânica de cultura todos participam dela e são-lhe parte integrante, nenhuma autoridade formal lhes pode vetar o acesso:

Os membros de uma sociedade, por menos instruídos que sejam, nunca estão privados de cultura, uma vez que cultura e afiliação social correspondem à mesma ideia.
Roger Scruton in "A Cultura Moderna" 1998

Uma concepção cultural clássica formaliza processos de gatekeeping mas permite-lhe o ingresso a quem capaz de pagar o preço e um elevador cultural aos mais dedicados. Uma definição romântica encontra lugar a todos no seu seio, mas ninguém pode escapar ao papel que lhe cabe. No terceiro capítulo do livro dedicado ao Iluminismo e alicerçado em Kant et al., Scruton retoma essa dualidade: razão, liberdade e leis válidas para todos que “daria lugar a uma jurisdição que garantia a paz (...) erodindo as rivalidades locais” pelos universais, versus pertença, lealdade, raízes e “tudo o que há de mais valioso na alma humana” pelos românticos.

Condensemos o Iluminismo antes de prosseguir:

A autoridade herdada perde a sua força. No Iluminismo ninguém é detentor do “direito divino” à obediência. A autoridade assenta na livre escolha daqueles que se lhe submetem. Logo, nenhum governo é legítimo se não for livremente aceite por aqueles que são governados. A organização política é encarada como um “contracto social” entre indivíduos no exercício da sua livre escolha, e não como um vínculo herdado.
Roger Scruton in "A Cultura Moderna" 1998

Devolveremos neste ponto pós-eleições.

À distinção feita compara à formulação entre dois tipos de sociedade por Ferdinand Tönnies, Gemeinschaft e Gesellschaft, e a transição de autoridades tradicionais para uma autoridade racional-legal (Max Weber) (*) Só alemães, senhores, só alemães.... A primeira compreende sociedades conservadoras, baseadas em “compromissos e lealdades como um destino que não é negociável”, suportadas nas relações de “afecto, no parentesco e vínculos históricos”. À segunda, equiparadas às sociedades modernas, “na divisão do trabalho, no interesse individual e na livre associação por contrato ou permuta”. E desta última a definição mais fria que já vos trouxemos do mundo que herdámos, e vcs sabem-nos primitivistas no core com muitas oportunidades anteriores para o avacalhar do dog-eat-dog, rat-race, esfola-gatos da sociedade actual:

As sociedades modernas (...) veem todas as instituições e práticas como provisórias, passíveis de ser revistas à luz da alteração dos nossos critérios (...) uma vez que os indivíduos começaram a encarar os seus compromissos em termos contratuais e, consequentemente, a prever uma forma de se lhes esquivarem.
Roger Scruton in "A Cultura Moderna" 1998

Regressaremos ao Iluminismo (“a mais popular explicação do Iluminismo foi concebida por Marx (*) Alemão! ), cultura popular e culturas tradicional-ó-clássicas, “uma série de mudanças com consequências profundamente significativas, e que estamos, ainda hoje, a tentar assimilar”. Porém, este tour por cismas culturais serve-nos propósitos para despropositar o primeiro não-teutão de hoje à luz do que foi pensado e dito atrás. Do seu famoso enunciado:

The whole scope of the essay is to recommend culture as the great help out of our present difficulties; culture being a pursuit of our total perfection by means of getting to know, on all the matters which most concern us, the best which has been thought and said in the world, and, through this knowledge, turning a stream of fresh and free thought upon our stock notions and habits, which we now follow staunchly but mechanically, vainly imagining that there is a virtue in following them staunchly which makes up for the mischief of following them mechanically.
"Culture and Anarchy" in Wikipedia nov 2020

— e afinal tão próximo dos nossos: ensaiamos que haverá formas de o fazer, mesmo staunch, muito mischief, nada mechanically (*) Digital, baby!, nenhum following. Programaticamente em sintonia, embora perscrutaremos por outros ambientes. Pistas quando voltarmos, comic-wise.

Culture seeks to do away with classes; to make the best that has been thought and known in the world current everywhere; to make all men live in an atmosphere of sweetness and light.
"Culture and Anarchy" in Wikipedia nov 2020

comic-wise