motivações menores
Existem muitas motivações particulares que podem levar alguém a editar pela primeira vez um fanzine, mas é muito possível que para lá de todas essas motivações subsista uma vontade comum de "dar um sinal de vida", fazendo qualquer coisa por si próprio.
in "hoje, a bd colóquios 1996 e 1999" 2001
Última volta à pequena cápsula do tempo com ênfase nos fanzines. Pouco ou nada mudávamos nos textos de 1999 para hoje apesar dos mundos apart que os separam: o mundo rodou, a bd não. A parca referência às tecnologias tem o seu contraponto nas alusões aos zines que pontilham intervenções no livro, assumidos como um elemento permanente no quadro maior da banda desenhada, ignorando que esses esgotavam a sua última década enquanto formato relevante. A web por vir que deveria continuar testemunho do zine analógico explodindo-o em todas as direções foi anulada nos pós-2000 pela facilidade de uso de interfaces mais amigas ao touch de bolso. Lamentemos a web que ficou – o consumo compulsivo & produção descaracterizada nos Instagram, TikTok et al dos seus utilizadores: nunca tantos conteúdos diy, nunca tão longe de qualquer self. Impossível resumir-vos em poucas linhas a importância da identidade – estamos há 26 anos a escrever esse texto – mas a título de exemplo façam o pequeno exercício de cruzar uma definição base –
Os autores de fanzines (...) são soberanos, no sentido em que não têm que "prestar contas" a ninguém por fazerem o que fazem. Por outras palavras, as apreciações externas não interferem de forma minimamente decisiva no processo de criação produção.
in "hoje, a bd colóquios 1996 e 1999" 2001
– com as regras de uso das vossas plataformas online: fodido, hem?
As citações retiradas do "A aventura criativa e editorial dos fanzines" 1996? de Daniel Alexandre da Silva Seabra Lopes merece (re)leitura na integra (*) Recuperámos igualmente o "Dossiê Bedeteca de lisboa 2000|2009" que haviam compilado depois dessa ter sido desligada e entretanto igualmente inacessível.: devolve-nos a uma era com futuros possíveis mais auspiciosos, pese a imbecilidade que esses continuam tecnicamente viáveis (por enquanto), falhando apenas o click mental entre os nossos pares para o realizar. Antecede também, embora por linhas tortas, tendências futuras que se efectivariam na relação entre democracia e bolhas digitais:
Admitindo portanto que o circuito dos fanzines não é um circuito de actividades criativas completamente «marginal» [no sentido de clandestino e ilegal], temos mesmo assim que considerar que os fanzines são um meio de expressão por vezes tão espontâneo e tão idiossincrático que tende naturalmente a mostrar-se alheio, tanto às conveniências e às recompensas institucionais, como à promoção do pluralismo nas esferas públicas.
A noção mais ou menos clara da proximidade do público influencia pois, a natureza do trabalho final, sobretudo em termos da sua "inteligibilidade". A consequência imediata que isto provoca no campo dos fanzines é aquilo a que podemos chamar uma "radicalização dos estilos", apoiada na forte cumplicidade que o autor mantém com os destinatários da sua publicação. Nesta base a compreensão total da mensagem ser-nos-á tão menos acessível quanto mais afastados estivermos do círculo de aficionados de um fanzine. Podemos inclusivamente imaginar casos em que o público de um fanzine seja composto apenas pelos seus próprios criadores num jogo de autocontemplação privada cujo sentido não será completamente decifrável por indivíduos exteriores. Ou seja, nem sequer estaremos em presença de um "público", mas antes de um círculo privado de amigos.
Ora, se a minha ideia estiver correcta, a faceta mais a-democrática dos fanzines não estaria propriamente no teor da "mensagem", nem na livre iniciativa que subjaz à emissão dessa mensagem — mas sim na maneira concreta de emitir, neste modo descomprometido de fazer as coisas. Os fanzines-objecto serão, por conseguinte, demasiado contingentes para ajudar a constituir democracia, ou pelo menos aquela cultura democrática que nos habituámos a conhecer, onde o pluralismo só se torna efectivo a partir do momento em que existe responsabilidade e uniformidade no plano das regras de conduta. Não podemos, a não ser cometendo um abuso de linguagem, continuar a falar de «democracia» em circunstâncias marcadas por uma tremenda independência [ou indiferença] em relação às apreciações externas, e por uma liberdade [ou irresponsabilidade] quase absoluta de movimentos. A interrogação que fica, pois, a pairar é a seguinte: a liberdade de fazer e publicar coisas é um dos legados mais importantes da consolidação da cultura democrática. Mas tudo se passa como se esta liberdade possuísse igualmente um lado tirânico, bem patente nos critérios que, ao nível das esferas públicas [a televisão, os jornais, as universidades...] regulam a emissão das mensagens. A consequência mais lamentável que daqui pode resultar é a perenização de um determinado "sistema" sob a máscara do confronto de ideias. No que toca aos fanzines, o que se perde em promoção do pluralismo de ideias na esfera pública ganha-se, no entanto, em idiossincrasia de códigos e maneiras de fazer / emitir. Mais que pelas ideias que destilam, os fanzines-objecto têm valor sobretudo como prática [não é muito corrente, acrescente-se, fazerem-se coisas com uma tal indiferença perante o lucro económico].
in "hoje, a bd colóquios 1996 e 1999" 2001
Parte da citação acima substituam zine pelas redes sociais que os substituíram. Parte da conclusão façam o mesmo, mas pela redenção das possibilidades do zine digital, houvessem mais desses. E porque uns poucos persistem, podemos igualmente tecer considerações no lusco-fusco do acertado-não acertado.
Seja como for, o fanzine-objecto, na sua máxima expressão, já não procura "intervir", chamar a si as atenções dos outros. É antes algo que o autor faz, de si para consigo, de acordo com os seus estados de espírito, e que poderá partilhar exclusivamente com mais algumas pessoas ["eleitas"].
in "hoje, a bd colóquios 1996 e 1999" 2001
Vcs sabem-se mais no canto do "aqueles cujo castigo é". Mas sobretudo, a distância maior:
Não existem prazos, não existem grandes compromissos nem grandes responsabilidades, não existem sanções, não existe uma efectiva necessidade em cumprir a totalidade dos objectivos previamente elaborados. Tudo se faz um pouco ao sabor do momento, durante os tempos livres, em círculos muito restritos e onde a "amizade" é o principal factor integrador. E tudo se faz na medida em que proporcione prazer. Por isto mesmo a maior parte dos fanzines existentes não consegue manter-se durante muito tempo em publicação.
in "hoje, a bd colóquios 1996 e 1999" 2001
Encontram-nos na parte menor: e se somos do contra?, se temos prazer em sofrer? Senhores: a mais antiga bd 'tuga online? o mais antigo zine PT na web ainda em produção?

