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« A aventura criativa e editorial dos fanzines » (1996)
A produção de fanzines (1) como produção artística e cultural
Daniel Alexandre da Silva Seabra Lopes
A maneira mais fácil de apresentar os fanzines é dizer que se tratam de publicações produzidas, editadas e distribuídas em condições que não correspondem completamente aos padrões de produção, edição e circulação das publicações ditas "oficiais". Assim, de um modo geral, todos os fanzines são publicações aperiódicas, editadas de acordo com possibilidades e objectivos económicos bastante restritos [o que se manifesta sobretudo na inexistência de remunerações para os seus colaboradores], e pressupõem ainda um circuito específico de distribuição, definido e explorado pelos próprios editores, o qual tende a afastar-se consideravelmente daqueles circuitos percorridos pelas empresas-distribuidoras. ¶ Mas é evidente que estamos perante uma apresentação demasiado formal: periodicidade, secundarização do factor económico e distribuição artesanal não são condições absolutamente indispensáveis para descrever um fanzine. Em primeiro lugar, existem fanzines que não partilham completamente estes três aspectos, e — o que é mais importante — nem querem partilhar, preferindo aproximar-se o mais possível do modelo das revistas "normais" [sendo as limitações inerentes à distribuição o primeiro "problema" que, a este nível, se procura resolver]. Por outro lado, tais aspectos não devem ser meramente considerados como "defeitos", algo que se procura a todo o custo ultrapassar, posição que nos levaria inevitavelmente a encarar todos os fanzines como revistas "falhadas". Acrescente-se, a este propósito, que a mera observação do aspecto exterior de alguns fanzines, bem como a qualidade do seu Conteúdo, não chegam para os distinguir "pela negativa" [aliás muitas vezes acontece o contrário] de qualquer publicação oficial. Para mais, num país como Portugal, onde as revistas de banda desenhada são praticamente inexistentes [e, quando existem, não costumam ter uma vida muito longa...], são mesmo os fanzines que tentam preencher essa lacuna. Posto isto, não falta quem sublinhe que a característica mais importante nos fanzines tem que ver com a motivação, com o gosto muito particular em "fazer coisas", em condições onde o trabalho criativo não se encontra profissionalizado. E recorre-se à etimologia da palavra ('fanzine' resulta da conjugação dos termos 'fanático' e 'magazine'] para justificar precisamente o lado entusiasta, militante, deste tipo de publicações... ¶ Seguramente, todos estas observações são importantes, e não merecem ser colocadas de parte. Mas não considero que sejam suficientes, por si só, para dar conta do que está verdadeiramente em jogo na produção de fanzines. O que importa esclarecer é que a produção de fanzines não será mais que uma manifestação particular de produção artística e, em termos mais gerais, de criatividade cultural. Perceber "o que é um fanzine"— e também aquilo que pode distinguir, pela positiva, um fanzine de qualquer publicação oficial — só valerá a pena se relacionarmos esta questão com um conjunto de factores ligados ao funcionamento de um sistema de produção cultural determinado. ¶ Assim, quando nos reportamos a um circuito de produção cultural não profissionalizado, que aspectos nos podem ajudar realmente a caracterizá-lo? Em primeiro lugar, aquilo a que eu chamo uma "auto-apreciação exclusiva", querendo com isto sublinhar uma singular soberania que detém o autor / editor de fanzines relativamente à avaliação dos trabalhos que decide publicar. Nos casos em que os editores de um fanzine sejam também os principais colaboradores —o que nem sempre acontece, como veremos, mas por agora concentremo-nos nesta possibilidade... — , não existirá ninguém "acima" ou "de fora" que avalie e controle, para o melhor e para o pior, a qualidade dos trabalhos publicados. Os autores de fanzines querem sobretudo mostrar e exibir as suas realizações, perante um público que normalmente lhes é bastante próximo, e querem fazê-lo tão depressa quanto possível. São soberanos, no sentido em que não têm que "prestar contas" a ninguém por fazerem o que fazem. Por outras palavras, as apreciações externas não interferem de forma minimamente decisiva no processo de criação produção. ¶ Basicamente, este género de atitude permite distinguir um fanzine de qualquer policopiado militar, religioso ou universitário [por muito aperiódicos, não-lucrativos e distribuídos artesanalmente que estes possam ser], entre os quais já é notória uma subserviência elementar face a princípios de ordem institucional. Por definição, os fanzines não se encontram directamente ligados a instituições; sejam elas públicas, privadas ou mistas, e como tal não intervêm na persecussão de objectivos especificamente institucionais. Digamos que a existência de fanzines é completamente independente dos desígnios institucionais, sendo em primeiro lugar um produto da auto-iniciativa dos seus criadores. Podem, em certos casos, beneficiar do apoio e reconhecimento por parte de algumas instituições, o que é uma questão completamente diferente... ¶ Uma segunda observação crucial é a seguinte: fazer fanzines implica ter a consciência, e a experiência, de uma "liberdade criativa absoluta". É sem dúvida uma observação que pode parecer polémica, dada a manifesta invisibilidade [e até a insignificância] da maior parte dos fanzines publicados. Mas é preciso ter em atenção que uma liberdade de criação quase absoluta não é o mesmo que uma liberdade de criação ilimitada. O que se pretende aqui sublinhar é que, dentro das imitações devidas e inerentes ao circuito dos fanzines, existe uma mais que provável liberdade total de movimentos associada à prática criativa e editorial, como já o indiciavam a preponderante auto-apreciação dos trabalhos, a vontade de os editar imediatamente, ou a inexistência de ditames hierárquicos. Na prática, o trabalho publicado em fanzines encontra-se normalmente liberto de toda uma série de exigências e rigores de comunicabilidade que, em princípio, já estarão presentes nas publicações oficiais [o respeito por determinados padrões de qualidade, a inteligibilidade do discurso, o cumprimento dos prazos, a correcção ao nível da linguagem escrita, a obrigação de refrear os conteúdos mais obscenos, etc.]. Nada impede um autor de fanzines de cumprir estas exigências, mas cabe sublinhar que ele não é — de todo — obrigado a isso. Mais à frente, analisaremos de que maneira esta liberdade tão radical pode ser incompatível com uma outra noção de liberdade, promovida por certas concepções de democracia. ¶ Um terceiro aspecto a destacar é este: os fanzines, pelo menos no momento da sua génese espontânea e livre de obrigações, constituem um modo de afirmar uma "autonomia pessoal" ou "grupal". Existem muitas motivações particulares que podem levar alguém a editar pela primeira vez um fanzine, mas é muito possível que para lá de todas essas motivações subsista uma vontade comum de "dar um sinal de vida", fazendo qualquer coisa por si próprio. Atendendo a que, como diria o jornalista e crítico musical Jon Savage, some-thing is mostly better than nothing (2). Os fanzines fazem parte de uma estratégia de exibição e comunicação autónomas que ajuda a consolidar quer um sentimento de auto-identidade, quer um sentimento de identidade colectiva [como nos casos dos inúmeros fanzines editados por núcleos de adolescentes]. ¶ Finalmente, um último aspecto a salientar relativo à produção de fanzines é a inequívoca preponderância de um "valor de produtividade cultural" [que pode ser de tendência mais estética, mais lúdica, mais informativa, ou mais intervencionista], a par de uma notória faceta contraproducente, em termos económicos. Os fanzines, muito embora possam ser compensadores do ponto de vista do desenvolvimento de auto-identidade, não dão lucro nenhum a quem os faz, e nem sequer chegam a possuir um público suficientemente vasto para constituir efectivamente um "mercado", no sentido mais forte da expressão. Não garanto que um fanzine seja completamente refractário a uma valorização de tipo económico: como objecto por natureza raro, ele é alvo da procura de alguns coleccionadores. Em certos casos, há fanzines que se podem tornar "históricos" e consideravelmente valiosos, na medida em que se tenham revelado particularmente influentes, ou quando exibem trabalhos de autores que entretanto adquiriram uma notoriedade apreciável. Mas estas valorizações só podem ser feitas muito a posteriori, sendo de resto influenciadas por factores que são completamente externos à produção de fanzines propriamente dita.
Fanzines-objecto e proto-revistas
É de crer que alguns editores de fanzines não se revejam completamente nos pontos acabados de enunciar. Mas o meu objectivo era começar por discernir aquilo que os, fanzines possuíam de mais específico, não enquanto "revistas falhadas", mas enquanto fanzines propriamente ditos. Efectivamente, para alguns editores, o que torna tão difícil definir eficazmente os fanzines é a fronteira cada vez mais ténue entre o fanzine e a revista. Mas importa salientar que essa fronteira só se torna ténue quando o 'modelo' da revista é claramente perseguido pelos editores de fanzines. Ora, nem sempre isso acontece. ¶ A actividade de produzir fanzines coloca o seguinte problema pragmático: conseguir fazer o máximo a partir de um mínimo de condições. É este o sentido mais positivo da experiência criativo-editorial no circuito dos fanzines. Vimos que existe uma notável margem de manobra associada à criação e edição de fanzines: os autores não têm compromissos, não têm prazos, não têm que sujeitar os seus trabalhos às opiniões de terceiros para os poderem publicar, etc. Por outro lado, é evidente que uma tal liberdade se exerce unicamente dentro de limites muito restritos, impostos sobretudo pelos baixíssimos recursos financeiros e pela parca distribuição comercial e promocional. Assim sendo, os autores — pelo menos os autores mais interessantes — tenderão a aproveitar o máximo da liberdade de que dispõem para, através das suas criações, explorar e suplantar as muitas insuficiências das condições de edição e distribuição de que dispõem. Chegados a este ponto, podemos seguir duas direcções: ¶ Chamarei "fanzines-objecto" a todas as publicações que, além de apresentarem todas as características atrás mencionadas, não pretendem estabelecer nenhum paralelo sério com o "modelo" das publicações oficiais. Ou seja: na produção de fanzines-objecto não se verifica uma auto-imposição daquelas exigências e rigores que as publicações oficiais devem seguir. Pelo contrário, aposta-se primordialmente no fanzine "tal como ele é". Em princípio, em qualquer fanzine-objecto o núcleo editorial e o núcleo autoral encontrar-se-ão unidos. De igual maneira, a distância entre público e autor será mínima [reforçada por uma tiragem muito pequena, ou até pela inexistência de exemplares reproduzidos]. Este aspecto é indissociável de uma forte cumplicidade entre autor e público, a qual pode mesmo implicar auto-indulgência na concretização dos trabalhos. Em todo o caso, por esta via poderão surgir objectos verdadeiramente insólitos: "revistas" totalmente imaginadas ou imaginárias, folhetos com conteúdos misteriosos e indecifráveis, jogando com a possibilidade de fazer todas as experiências e mais algumas, de levar as coisas até um extremo, de se ser praticamente tudo — sem nunca institucionalizar nada. ¶ Nesta acepção, fazer fanzines constituirá mesmo uma forma de coquetterie — como arranjar as flores numa jarra, ou pôr a mesa com todo o requinte quando não vem ninguém para jantar... — considerando aqui a coquetterie um culto privado [doméstico], virado para a criação de laços de identificação e afectividade com os objectos, contribuindo assim para uma enigmatização das coisas que nos cercam (3). Ou então — também é uma hipótese, mas menos provável — simplesmente um gesto fetichista [dado o carácter intrinsecamente objectístico e "obsessivo" dos fanzines-objecto]. Seja como for, o fanzine-objecto, na sua máxima expressão, já não procura "intervir", chamar a si as atenções dos outros. É antes algo que o autor faz, de si para consigo, de acordo com os seus estados de espírito, e que poderá partilhar exclusivamente com mais algumas pessoas ["eleitas"]. O aspecto da reprodução torna-se naturalmente secundário: nem sempre se fazem reproduções, cada fanzine pode ser um objecto absolutamente único. ¶ Em contrapartida, podemos apelidar de "proto-revistas" todos aqueles fanzines que perseguem o modelo corrente das publicações oficiais [ou comerciais], sobretudo com a intenção de inovar ou modificar qualquer coisa no meio editorial profissionalizado. Nestas condições, o fanzine conhecerá muito provavelmente uma segmentação entre o núcleo editorial e o núcleo autoral [como acontece com as publicações Quadrado e Azul BD Três], segmentação que permite aos editores uma avaliação mais imparcial dos trabalhos que decidem publicar. Os autores — ou os artistas, como se quiser... — tornam-se assim meros colaboradores, embora ainda não remunerados [ou remunerados muito simbolicamente]. Assistir-se-á igualmente a um alargamento da distância entre autores e público. O público deixa de ser simplesmente o grupo de amigos e companheiros, para se tornar numa categoria bem mais indiferenciada, facto que também vem travar uma certa tendência para a auto-indulgência no plano da concretização dos trabalhos. Neste âmbito, a arma mais utilizável é a qualidade das realizações de autor, mas também a qualidade da impressão ou do design gráfico do fanzine. No caso de alguns fanzines de banda desenhada portuguesa é inquestionável o valor dos trabalhos que apresentam, relativamente aos publicados em certas revistas. Não obstante, será óbvio que, por este caminho, se perde aquilo que os fanzines — enquanto forma de publicar — possuem de mais genuíno e imaginativo... A partir desta segmentação essencial entre fanzines-objecto e proto-revistas, podem então descobrir-se publicações versando sobre os mais variados temas: rock, banda desenhada, jogos de computador, artes marciais, ficção científica, poesia e literatura, esoterismo, e ainda temas de cariz político e intervencionista, com ideologias mais clássicas ou mais actuais [anarquismo, neo-nazismo, vegetarianismo, feminismo, homossexualidade, direitos dos animais, etc.]. Quantos são, e como se distribuem, é muito difícil sabê-lo. É tarefa quase impossível elaborar um relatório totalmente eficaz [e mesmo que isso se conseguisse, o relatório tornar-se-ia por certo desactualizado passado pouco tempo]. Aqui se encontra, sublinhe-se, parte da magia dos fanzines (4). Ficam todavia os contactos de algumas distribuidoras de fanzines, o que seguramente ajudará o leitor interessado a construir o seu próprio itinerário através de um mundo tão volátil e tão ecléctico: Jogo de Imagens, Associação Impressionante, Olhos de Raiva...
Fanzines, liberdade de expressão e cultura democrática
Gostaria agora de debater com algum pormenor a relação existente entre a produção de fanzines e a democracia [ou, pelo menos, certas concepções de democracia]. Porque me parece que, se é verdade que a produção de fanzines se pode considerar, em boa medida, o resultado de condições tornadas possíveis por um plano político de cariz democrático, ela se efectua, apesar disso, segundo moldes que estão um pouco "para além" da prática mais convencional da democracia. Falarei aqui de "democracia" em termos que não deixarão de ser demasiado genéricos, considerando-a uma forma de governo que favorece a identificação entre governantes e governados através de variados sistemas de representação política, e que procura igualmente promover uma participação — tão eficaz quanto possível — dos cidadãos nas decisões políticas. Deve-se ainda notar que o reconhecimento do direito dos cidadãos à participação política tem sido acompanhado, mais recentemente, por um esforço de democratização das principais instituições que compõem a sociedade civil [família, escolas, empresas, serviços públicos] (5). ¶ Esclareço também desde já que o advento da produção de fanzines não pode ser exclusivamente reportado a uma "socialização da democracia", ela própria resultado da formação e consolidação de sistemas políticos de inspiração democrática. Este factor é claramente importante, mas se nos limitarmos a ele ficaremos ainda com um quadro de transformações sociais demasiado incompleto para tornar compreensível, à luz de uma continuidade histórica, a emergência do fenómeno da produção de fanzines. Outros dois factores merecem ser mencionados, encontrando-se de resto profundamente interligados com a sedimentação de uma cultura democrática: ¶ Em primeiro lugar o desenvolvimento, mas sobretudo a crescente acessibilidade [só possível em condições de democracia...], das tecnologias de reprodução e informação — aspecto que conta principalmente porque contribui para instaurar um maior à vontade no "fazer" e "publicar" informação. De resto, esta informação pode ou não ser impressa, e considero legitimas as comparações que se estabelecem entre a produção de fanzines, num sentido mais tradicional, e a recente divulgação de revistas via internet (6). ¶ Em segundo lugar, temos aquilo que se pode designar como uma massificação da actividade artística, e que é o resultado de várias transformações que ocorreram, no sistema da arte ocidental, a partir de meados do século XIX, nomeadamente: um declínio do poder das academias na determinação dos códigos estéticos, a intervenção dos chamados movimentos de vanguarda [que contribuíram para o florescimento da actividade criadora enquanto actividade autónoma, individualizada, incondicionada], a reorganização complexiva do mercado dos bens culturais, bem como os progressos nas tecnologias de informação acima apontados [entre os quais se inclui o advento dos mass media e a formação de uma "cultura de massas"]. Qualquer um destes dois aspectos mereceria ser exposto com mais detalhe. Mas vou sobretudo preocupar-me em analisar aqui o modo como os fanzines espelham [ou não] uma cultura e uma moral democráticas (7). ¶ Se levarmos em linha de conta que a produção de fanzines é, essencialmente, produção cultural e artística, facilmente se admitirá que os moldes em que se desenrola essa produção são indissociáveis da tolerância face às iniciativas no campo da cultura que caracteriza os contextos políticos e sociais de raiz democrática. Em Portugal, durante o Estado Novo, existiam mecanismos — como a censura prévia e a polícia política — que dificultavam seriamente aquelas práticas culturais que não se encontrassem sintonizadas com a ideologia do regime. A exigência de uma caução para a fundação de revistas, a ameaça da apreensão de livros depois de terem sido editados, os cortes nos artigos de jornal que obrigavam a refazer a paginação ou a edição, eis apenas algumas medidas concretas através das quais se exercia uma efectiva repressão cultural (8).Todas as iniciativas no campo da cultura não eram supostas aparecer simplesmente porque os seus autores "achavam que sim", mas antes na medida em que elas não contrariassem uma vinculação ideológica única e adversa a alternativas. De resto, a censura prévia exprimia bem o objectivo de, nas palavras de Fernando Rosas, "não correr o risco de se deixar escrever, falar ou mostrar (9). ¶ A presença de mecanismos de repressão cultural produziu algumas consequências bastante curiosas, e que nos servirão para distanciar os fanzines de qualquer publicação impressa [legal ou clandestina] do período da ditadura. Assim, durante o Estado Novo, assistiu-se à formação de uma autocensura na consciência dos intelectuais que continuavam a utilizar as vias de publicação normalizadas, a par da criação de estratagemas para tornear a censura. Mas nada disto tem obviamente que ver [nem serve sequer como antítese] com a auto-avaliação exclusiva, nem com a experiência de liberdade que caracteriza o trabalho criativo nos fanzines. ¶ Por outro lado, aumentava a divulgação secreta e clandestina de várias obras, em particular aquelas cujo teor se opunha declaradamente à ideologia vigente (10). Este aspecto da clandestinidade é crucial: por muito "marginal" que nos pareça, hoje, o universo dos fanzines, será sempre bom relembrar que editar fanzines sem os submeter à aprovação de entidades exteriores, não é mais, por si só, uma actividade proibida, ilegal, punível pela lei. Assim, onde quer que exista produção cultural clandestina não poderá, em rigor, falar-se de fanzines. Eis um ponto que complementa, de certa maneira, as ideias atrás avançadas acerca da relação dos fanzines com as instituições. ¶ Referi que os fanzines podiam beneficiar, em determinadas circunstâncias, de reconhecimento e apoio por parte das instituições. A título de exemplo, temos os casos em que certos órgãos oficiais [normalmente os pelouros da cultura desta ou daquela câmara municipal] subsidiam sem contrapartidas assinaláveis a edição de fanzines. Temos as feiras de fanzines. E ainda todos os casos em que os fanzines se tornam motivo para uma notícia ou artigo de jornal. No entanto, a existência dos fanzines deve ser considerada como prévia e completamente independente da vontade dos poderes públicos, isto sem nunca chegar ao ponto extremo de se tornar uma existência clandestina. Situação que só se torna plenamente compreensível à luz da referida tolerância democrática face às iniciativas no campo da cultura. ¶ O facto de os primeiros fanzines de banda desenhada [ou outros quaisquer] serem ligeiramente anteriores ao 25 de Abril não tem grande pertinência, se pensarmos que a repressão cultural se foi tornando cada vez mais débil, em Portugal, logo a partir da década de 60. E se a censura prévia nunca conseguiu ser 100% eficaz, a incompetência dos funcionários munidos do «lápis azul» tornou--se particularmente notória nos últimos anos da ditadura. De resto, uma cultura democrática nunca se constrói simplesmente a partir dos escombros de um regime ditatorial. Ela começará sempre por se formar nas brechas da própria repressão totalitária. ¶ Avancemos agora por questões mais polémicas. Em termos abstractos, poder-se-ia afirmar [como eu próprio fiz, na minha dissertação de licenciatura] que os fanzines ajudam a consubstanciar a cultura democrática, nomeadamente ao nível do princípio da liberdade de expressão. Por outras palavras, a existência de fanzines serviria para ilustrar o reconhecimento — por parte das instâncias do poder — de que todas as ideias e conteúdos têm direito a manifestar-se. Mas por que meios? E através de que canais? ¶ Eis o problema. Não se pense que democracia e liberdade de expressão coincidem automaticamente. Um dos principais objectivos da democracia tem seguramente que ver com a criação de circunstâncias que permitam o desenvolvimento e a expressão das potencialidades e qualidades pessoais. Mas a democracia pressupõe qualquer coisa mais: o compromisso das pessoas em relação ao diálogo e uma responsabilidade pública. Mais precisamente: a liberdade de expressão tem de ser acompanhada por um esforço de participação que permita que diversas ideias se façam ouvir num domínio público, incrementando assim o pluralismo (11). Ora, é aqui que, segundo penso, os fanzines "falham". A produção de fanzines é, como se disse, consideravelmente impulsionada pela possibilidade de mostrar, de tornar visível, um objecto finalizado. Só que esta apresentação do objecto finalizado tende a realizar-se [particularmente no caso dos fanzines-objecto] no interior de círculos muito restritos, e que mantêm uma relação privilegiada com o próprio círculo autoral. Assim, o público imediato de um fanzine-objecto é quase sempre constituído pelo grupo de amigos e familiares do autor, ou ainda pelo grupo de "aficionados" do tema da publicação, mas pouco mais. O grau de proximidade entre autor e público é crucial — serve aqui de barómetro para se avaliar até que ponto a liberdade de expressão que vinga na produção de fanzines coincide com a liberdade de expressão que se pretende promover nas chamadas esferas públicas. ¶ A circunstância de o autor de fanzines não se encontrar sob pressão, imediata de todas as exigências e conveniências ditadas pelo gosto de um público mais vasto parece ter reflexos imediatos ao nível da execução do seu trabalho. Quer dizer: não é a mesma coisa fazer um trabalho que se sabe de antemão que irá ser apresentado e largamente divulgado nos circuitos comerciais e fazer um trabalho sabendo de antemão que a sua divulgação vai ser muito restrita. No primeiro caso ter-se-á que operar inevitavelmente uma síntese entre o privado [no sentido do "mundo privado do autor"] e o público, síntese que aliás é bem cara à democracia. A noção mais ou menos clara da proximidade do público influencia pois a natureza do trabalho final, sobretudo em termos da sua "inteligibilidade". A consequência imediata que isto provoca no campo dos fanzines é aquilo a que podemos chamar uma "radicalização dos estilos", apoiada na forte cumplicidade que o autor mantém com os destinatários da sua publicação. Nesta base a compreensão total da mensagem ser-nos-á tão menos acessível quanto mais afastados estivermos do círculo de aficionados de um fanzine. Podemos inclusivamente imaginar casos em que o público de um fanzine seja composto apenas pelos seus próprios criadores num jogo de autocontemplação privada cujo sentido não será completamente decifrável por indivíduos exteriores. Ou seja, nem sequer estaremos em presença de um "público", mas antes de um circulo privado de amigos. ¶ Admitindo portanto que o circuito dos fanzines não é um circuito de actividades criativas completamente «marginal» [no sentido de clandestino e ilegal], temos mesmo assim que considerar que os fanzines são um meio de expressão por vezes tão espontâneo e tão idiossincrático que tende naturalmente a mostrar-se alheio, tanto às conveniências e às recompensas institucionais, como à promoção do pluralismo nas esferas públicas. Toda a dimensão da produção de fanzines nos aparece como uma dimensão feita de contingências. Não existem prazos, não existem grandes compromissos nem grandes responsabilidades, não existem sanções, não existe uma efectiva necessidade em cumprir a totalidade dos objectivos previamente elaborados. Tudo se faz um pouco ao sabor do momento, durante os tempos livres, em círculos muito restritos e onde a "amizade" é o principal factor integrador. E tudo se faz na medida em que proporcione prazer. Por isto mesmo a maior parte dos fanzines existentes não consegue manter-se durante muito tempo em publicação. Ora, se a minha ideia estiver correcta, a faceta mais a-democrática dos fanzines não estaria propriamente no teor da "mensagem", nem na livre iniciativa que subjaz à emissão dessa mensagem — mas sim na maneira concreta de emitir, neste modo descomprometido de fazer as coisas (12). Os fanzines-objecto serão, por conseguinte, demasiado contingentes para ajudar a constituir democracia, ou pelo menos aquela cultura democrática que nos habituámos a conhecer, onde o pluralismo só se torna efectivo a partir do momento em que existe responsabilidade e uniformidade no plano das regras de conduta. Não podemos, a não ser cometendo um abuso de linguagem, continuar a falar de «democracia» em circunstâncias marcadas por uma tremenda independência [ou indiferença] em relação às apreciações externas, e por uma liberdade [ou irresponsabilidade] quase absoluta de movimentos. Mas isto também não significa que haja qualquer coisa de perigosamente autocrático nos fanzines-objecto [de um modo geral, os fanzines não prejudicam ninguém]. Em suma, será mais correcto pôr a noção de democracia "entre parênteses" [evitando transformá-la numa referência demasiado avassaladora], quando se trata de captar, na sua espontaneidade, a experiência criativa e editorial dos fanzines. A interrogação que fica, pois, a pairar é a seguinte: a liberdade de fazer e publicar coisas é um dos legados mais importantes da consolidação da cultura democrática. Mas tudo se passa como se esta liberdade possuísse igualmente um lado tirânico, bem patente nos critérios que, ao nível das esferas públicas [a televisão, os jornais, as universidades...] regulam a emissão das mensagens. A consequência mais lamentável que daqui pode resultar é a perenização de um determinado "sistema" sob a máscara do confronto de ideias. No que toca aos fanzines, o que se perde em promoção do pluralismo de ideias na esfera pública — ou, como diria João Carlos Espada, em sujeição das convicções pessoais à "moderação resultante do confronto pacífico com convicções rivais" — ganha-se, no entanto, em idiossincrasia de códigos e maneiras de fazer / emitir. Mais que pelas ideias que destilam, os fanzines-objecto têm valor sobretudo como prática [não é muito corrente, acrescente-se, fazerem-se coisas com uma tal indiferença perante o lucro económico]. E, ao nível da prática, parece existir ainda muita uniformidade e muita tirania por combater...
Glossário
Auto-apreciação exclusiva — soberania do autor de fanzines [vd.] na avaliação dos trabalhos que decide fazer e publicar, revelando uma situação onde não existem ditames hierárquicos, nem compromissos externos significativos.
Autonomia pessoal ou grupal — considera-se que criar fanzines [vd.] pode ser_ parte de uma estratégia-de exibição e comunicação autónomas, com reflexostivos em termos da identidade pessoal e colectiva dos sujeitos envolvidos.
Esfera pública — domínio onde é efectivado o pluralismo de ideias, mediante o compromisso em relação -ao diálogo por parte dos cidadãos participantes. Este pluralismo pressupõe ainda conformidade face a uma série de exigências e rigores comunicabilidade. Exemplo de esferas públicas: a televisão, os jornais, as universidades, as assembleias, etc.
Fanzines — para além de serem, na quase totalidade dos casos, publicações -aperiódicas, não lucrativas, e distribuídas artesanalmente — ou semi-artesanalmente -, os fanzines distinguem-se ainda por não se encontrarem na dependência de qualquer instituição, e por não possuírem — um estatuto clandestino [corno Jà acontece com outro tipo de publicações em contextos de repressão cultural). Rsultado exclusivo da iniciativa dos seus criadores, os fanzines constituem um circuito de produção cultural demasiado contingente e libertário para fazer parte da esfera pública [vd.]. Apresentando ainda temáticas e características particulares muito diversas, estas publicações admitem contudo uma divisão-base entre fanzines-objecto [vd.] e proto-revistas [vd.].
Fanzines-objecto — publicações onde o núcleo editorial e o núcleo autoral se encontram unidos, sendo a proximidade [e a cumplicidade] entre público e autor igualmente muito elevada. Os fanzines-objecto revelam-se — muito mais que as proto-revistas [vd.] — demasiado idiossincráticos e contingentes para poderem [ou quererem] intervir na esfera pública [vd.]. São fanzines [vd.] no sentido mais radical e genuíno da expressão.
Liberdade criativa absoluta — situação que difere profundamente da auto-censura, mas que se opõe sobretudo à auto-imposição de padrões de comunicabilidade vigentes na esfera pública [vd.]. O autor decide como transmitir uma qualquer mensagem, escolhendo os moldes que mais lhe agradam, e sem se preocupar com tornar essa mensagem acessível a um público mais vasto e indiferenciado.
Proto-revistas não são exactamente fanzines [vd.], nem são exactamente "revistas", mas aproximam-se mais das segundas que dos primeiros. Nas proto-revistas assiste-se a uma separação entre o núcleo editorial e o núcleo autoral, bem como ao aumentar da distância — e sobretudo à anulação da cumplicidade — entre autores e público. Por isto mesmo, muitas proto-revistas estão já em condições de intervir normalmente na esfera pública [vd.].
Radicalização dos estilos — processo em que o modo de um autor se -expressar se encontra profundamente penetrado por elementos pessoais e idiossincráticos, ao ponto de impossibilitar uma completa decifração exterior das suas mensagens, tornando ao mesmo tempo redundante -a sua decifração a partir do interior. Viciação da compreensão de uma mensagem devido à inexistência de uma síntese, elaborada pelo autor, entre o privado [pessoal] e o público [não-pessoal].
Valor de produtividade cultural preponderante — com esta expressão pretende-se sublinhar uma situação em que a criatividade cultural [de raiz estética, lúdica, informativa ou intervencionista] subsiste, revelando-se todavia economicamente contraproducente. Produção cultural não submetida aos imperativos do lucro.
1. O termo fanzine designa um conjunto de publicações cujas características variam consideravelmente, em termos internacionais. Assim, tudo o que se disser ao longo deste texto terá que ver, em primeiro lugar, com o que se passa em Portugal.
2. Jon Savage (1977) «Fanzines: every home should print one» ín Sounds, 10.09.1977 (agora em Savage, J., Time Travei, Chatto & Windows, London 1996). Também Cristiano Pereira, num artigo recente, atende a esta posição, referindo que «a verdadeira essência de um fanzine baseia-se no espírito do Do it yourself (faça você mesmo) e do Non profit (sem lucro). Com efeito, elaborar um fanzine, não é tarefa árdua. Uma simples máquina de escrever, um computador e uns tostões para investir em fotocópias são os únicos meios necessários para quem decida avançar com o seu projecto» (Cristiana Pereira Escritos subversivos. O mundo paralelo dos fanzines, in Jornal de Notícias, 04.04.1996 — sublinhado meu.
3. Cf. Catherine N’Diaye (1987) A Coquettene, ou a paixão do pormenor, Edições 70, Lisboa, 1989
4. Mencione-se, apesar de tudo, uma amostra significativa elaborada por Geraldes Lino na sua Volta a Portugal em fanzines, in Eco Regional, 14.03.1996.
5. A apresentação destes pontos foi feita com base num artigo de Norberto Bobbio (1978) para a Enciclopédia Einaudi, intitulado democracia/ditadura (trad. port. vol. 14, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1989).
6. Subscrevo, por conseguinte, o ponto de vista de João Fonte Santa — formulada aquando da apresentação pública da primeira versão do presente texto, na Bedeteca, a 02.05.1996 — chamando a atenção para o funcionamento da internet ser o «funcionamento típico dos fanzines».(*) O destaque é nosso. 🤘 O que conta, nesta aproximação, são factores como a necessidade de desenvolver uma experiência pessoal artística, e desenvolvê-la comunicando-a aos outros, tão rapidamente quanto possível (sem ter que pedir favores especiais a ninguém, etc). Já tem menos interesse, quanto a mim, negar uma aproximação com as revistas virtuais da internet invocando a natureza de «publicação impressa» radicada na palavra fanzine: as terminologias e as etimologias — de resto sujeitas a permanentes subversões (grafzine, fanálbum, etc.) — não são suficientemente elucidativas quando se trata de compreender a produção de fanzines como um modo muito peculiar de criar e divulgar informação. Não é por serem publicações impressas que os fanzines se distinguem, como também não podemos admitir que a informação que circula na ínternet se distingue somente porque aparece no ecrã.
7. Sobre o papel das tecnologias na massificação da actividade estética, consulte-se o ensaio clássico de Walter Benjamin (1936) "A obra de arte naeEra da sua reprodutibilidade técnica", in Benjamin, W., Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio D'Água, Lisboa 1992. Sobre a importância das academias na consagração exclusiva de uma arte oficial, leia-se Alexandre Melo (1994), O Que é Arte?, Difusão Cultural, Lisboa, pp.24-28. Sobre os movimentos de vanguarda e reorganização do mercado da arte, A. Asor Rosa (1977), "Vanguarda", in Enciclopédia Einaudi, trad. port. vol. 17, imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1989. Para uma tentativa de síntese de todos estes pontos e sua relação com a produção de fanzines pode ainda consultar-se, de quem escreve, A produção de fanzines. Elementos para o estudo da significação cultural da experiência artística, dissertação de licenciatura em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa 1994, pp. 25-29. (também disponível na Bedeteca).
8. Cf. Carlos Reis (1990) "A produção cultural entre a norma e a ruptura", inReis, A. (dir.) Portugal Contemporâneo, Vol. IV, Alfa, Lisboa, p. 210.
9. "O Estado-Novo (1926-1947)", in Mattoso, J. (dir.) História de Portugal, vol. 7, Círculo de Leitores 1994, p. 275.
10. Para um desenvolvimento destes e doutros aspectos, vejam-se os artigos de Maria Antónia Palla (1990) “A renovação da imprensa, apesar da censura”, in Reis, A. (dir.) Portugal Contemporâneo, Vol. V, Alfa, Lisboa, e Carlos Reis, Op. Cit.
11. É justamente sob o aspecto da partilha de regras comuns de boa conduta que incidem algumas reflexões de inspiração liberal sobre o fenómeno democrático. Por exemplo, João Carlos Espada salienta qu'e a democracia assenta na possibilidade de aplicação alternante de programas rivais, legitimados pela vontade popular. Mas a condição dessa alternância reside na obediência de todas as regras gerais. A democracia é, por isso, muito menos acerca de programas específicos e muito mais acerca de normas gerais de boa conduta" (J. C. Espada, "Democracia e normas de conduta", in Público, 29.04.1996). Por outras palavras, a diversidade dos conteúdos políticos depende de uma sujeição a formas comuns (normas gerais de conduta), as quais já não é t.» óbvio, que sejam legitimadas pela "vontade popular" (e é aliás bem mais fácil impor-lhas...). E a democracia tem muito mais a ver com esta uniformidade do que com aquela diversidade.
12. Para que não restem dúvidas: a questão não diz simplesmente respeito aos conteúdos. A este nível, qualquer fanzine ou qualquer revista que propagasse, por exemplo, ideais fascistas seria obviamente considerada "não-democrática". De res-to, a democracia também tem os seus adversários, e qualquer um desses adversários poderia aceitar exprimir as suas ideias na esfera pública, sem por causa disso se afirmar como democrata (exemplo dos depoimentos de kaúlza de arriaga na televisão, aquando das comemorações dos 20 anos do 25 de Abril...). O que está aqui em jogo — repito-o — prende-se com a uniformidade de critérios que regem as emissões de informação precisamente nas esferas públicas, facto que chega a tornar irrelevante, em determinadas situações, o próprio debate de ideias.