OS POSITIVOS

cinco minutos de cultura por dia

♪ To the mother of my enemy, I just killed your son ♪
♪ He died with his face to the sky and it can not be undone ♪
*

Quando a cultura não rasga por dentro, autêntica, é assalariada, fake, ou devemo-la ao ócio em aborrecido, fraud. Hoje da última, pelo seu inverso (*) Da que arde vs a que se vende vide OS POSITIVOS, qualquer entrada.: ninguém, reduzido à condição de besta de carga, desenvolve uma apetência por nuances de sofisticação intelectual. Espreitemos entre os mais espezinhados da sociedade, as espezinhadas:

Levantara-se às 4h para sair de casa, em Sacavém, para ir fazer limpezas na zona do Campo Pequeno. Costuma apanhar o autocarro das 5h10. As queixas de mau serviço não são de agora. "Agora a gente fica na paragem. Não tem horários fixos." Ao final da tarde, quando sai às 20h depois de fazer limpeza no Campus de Justiça, tem sido "ainda muito pior. Está muito complicado."
in "A norte do Tejo, a Carris Metropolitana também está a arrancar aos solavancos" 13 jan 2023

Queiramos crer, entre as longas horas que não lhe sobram, que algum Proust tenha feito o seu caminho, mas podemos realmente supor que as tenha no início ao fim? Como mergulhar sublimes literários ou poesia de merda, esmagados entre afazeres por uma sobrevivência incerta? Quando este vosso escriba não dorme 12 horas o cansaço é mais forte que a caneta, e-lhe um esforço colossal discorrer ironias sobre o quotidiano em linhas apressadas no papel, que sorte têm aqueles a quem a sociedade dá menos valor acordados que outros a dormir?

Mesmo dia, saindo do elevador (pun intended), conversa entre duas meninas das limpezas: que a amiga desça com ela aos pisos subterrâneos, que tem medo de lá trabalhar sozinha. Não são só as subidas de juros, receios financeiros num futuro distante que lhes colhe liberdade. É mais primário, o temor pela sua segurança imediata, o presente acossado. Devolvem-nos à Chelas da nossa juventude, lâmina aberta na mão recolhida dentro de mangas nas horas da penumbra, o olhar por cima do ombro a quem vem atrás, o apressar de marcha de quem segue à frente, pertences debaixo de braço com mais firmeza e maior nervosismo. (Hoje bem mais aprumadinhos), movemo-nos pelo mundo com o à-vontade de mais 90 kilos em tons de rosa e uma pila. Um nada para nós, um luxo que elas nunca terão.

Caso terceiro: par de velhotas, sobrevivência muito incerta, rol de queixas, não se percebe o sistema de senhas, o mundo é como é, resignadas com tamanho dó que lhes podiam arrancar o coração ali e agora e (muito-diriam-mas) nada fariam. Chamaram o nosso número, passámos-lhes à frente depois de passarmos por elas ao entrar. Repetem uma à outra que só há um conforto na vida: novelas e Jesus. São dois, não as corrigimos. Bebem do mesmo fundo de verdade que todos nos repetimos: ficções.

A cultura, senhores, sobra aos que têm avenças da Uber ao mês, meio milhão quando despedidos. Aos que é negada a sua, apinhados à camioneta cheia, é-lhes providenciada uma. Toda a realidade que nos chega, dos media ao tiktok, é mediada — também há os que acreditam num ensino público, outros que governos democráticos reflectem a vontade dos governados. Levantem os olhos do ecrã. Nunca deixem de tirar 5 minutos por dia para odiar o mundo à vossa volta.


*) Do poema:

Dear Enemy, I have killed your son. He had caught sight of me and followed me. He had courage. I backtracked and shot him from ambush. He died quickly and with dignity. In the quiet after, I crawled over to him. I took him into my arms. I kissed him. He is my first kill. I die with him.
in "the poem/story that inspired tougher colder killer" 19 maio 2012

o mundo à nossa volta