OS POSITIVOS

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afinal, cultura ensinada

Passámos o fim-de-semana a monte — pun! — com outras aventuras e diferentes léxicos, mas com vontade suficiente para arrumarmos o que sobrava do Scruton entre o possível (*) Talvez lhe devêssemos mais atenção, talvez a venha a ter, como aos demais justificará o tempo se nos cruzar caminhos. Se não, da sua relevância estamos conversados.. Seguem-se i) comics, o ii) bom e o iii) mau, mau primeiro, bom depois, BD ao fim: recompensas entre os P+ só para os mais persistentes.

Mau. Condensamos fecho de impressões no regresso à proposição inicial: como tantos inscritos à estirpe elitista dos que sabem o que é melhor para os outros, processo no qual não haverá dúvidas onde, sempre que necessário, e esse “sempre” parece ser sempre, se deve dobrar a vontade individual ao bem maior, tipicamente, a grande custo e sacrifício ao individuo, tipicamente submetido às tradições da hierarquia vigente, tipicamente, sem contestação de maior (*) Fer fucks sake, termina livro recuperando Confúcio, para quem “os costumes imemoriais eram mais importantes que uma ideia nova que causasse empolgação.” [pag.200]. Diferirá de outras estirpes autoritárias à sua esquerda e à sua direita apenas na origem dessa autoridade que todos deve sujeitar — das tradições orgânicas por oposição a diretivas ideológicas ou políticas decididas em gabinetes ministeriais e comités revolucionários —, mas partilhará com eles a mesmíssima “iluminação” que todos desta sorte (e nosso azar) reiteram entre si desde Platão: para que a sociedade possa sobreviver, ou os que nessa importam, as pessoas devem ser levadas a acreditar em algo inventado, que só uns poucos sabem não ser verdadeiro. À vossa imaginação quem, nessas comunidades, reconhece a mentira mas opta perpetuá-la. Scruton inicia o livro com exemplo à religião, morto deus atribui funções à arte e alta cultura como a única capaz de unir comunhão no mesmo êxtase interpessoal que a valide. Que despreze a cultura pop, nenhuma surpresa. Infelizmente, por aí nos podia ter perdido: tivéssemos começado pelos seus capítulos em imagem moderna (fotografia, cinema) ou música e youth culture, e teríamos rapidamente abandonado leituras ao caixote do lixo. Particularmente nesse último mas com indícios já revelados no anterior, esperávamos encontrar uma critica demolidora da cultura popular — procuramos anticorpos, mas também munição —, afinal tão superficial e vazio de ideias que só os mais beatos não abandonarão sermão a meio. No tocante a sexo, drogas e rock’n’roll, apesar de digressões pitorescas, o seu discurso é estéril, o expectável dum pároco de aldeia cujos limites do mundo conhecido se quedam nos muros do seminário que o pariu, irrompendo na salinha dos escuteiros para os repreender pelos estranhos sons que lá fazem. E, como todos os padres, a obsessão pelo sexo dos outros e coito em família é exasperante. Para quem, páginas algures, chacoteia Freud no totemismo (“o livro absurdo de Fred, Totem e Tabu” [146: rodapé], “onde Freud diz coisas menos sábias sobre a estrutura da sociedade” [205: bibliografia]), apontamos a Scruton demasiadas justificações freudianas para causa & efeito que enumera às “falsas emoções” e outros comportamentos duvidosos da juventude, invariavelmente encontrando predicados no sexo ou relação dos teens revoltosos sem causas evidentes que a rebelião a raiar o insano ante os seus progenitores. Ie, a sua ignorância é vasta, e no contrário de outras referências anteriores (Wagner, T.S.Eliot, outros), as suas alusões a Nirvana, The Prodigy, outros, tão sofridas que lastimáveis — chega a trocar letras de músicas num dos exemplos. Nestas mesmas páginas onde Scruton descreve tão desfavoravelmente o fã e lhes é mais crítico, torna-se penosamente evidente que ele próprio é igual fã, também ele um "insatisfeito dos últimos-dias: uma comunidade imaginária de destituídos" (*) Como dirá adiante de outra comunidade, essa habitualmente oposta ao fandom., apenas trocando mesmo fervor e "delírio repleto de jargão" por outras bandas. E se aqui caímos na mesma armadilha lógica a que ele sucumbiu, salvaguardamo-nos admitindo que não fomos fãs por qualquer um, atacamos os que atacam que atacam com propósitos alheios a esta discussão em mesa:

A banda oferece afiliação. É, pois, imperativo que o fã escolha a sua banda e a glorifique acima de qualquer rival. No final, a escolha é arbitrária (...) mas é uma escolha que tem que ser feita.
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

Neste ponto a verve do autor chega-lhe para tornar algo positivo num insulto disfarçado com tiques elitistas. Pontos pelo humor.

A cultura da juventude orgulha-se pelo seu caracter inclusivo. O mesmo é dizer que ela elimina todas as barreiras à afiliação, todos os obstáculos que se apresentem sobre a forma de erudição, competência, alusão, doutrina ou disciplina moral.
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

Bom. Felizmente cumpre-se uma promessa de desconstruir o desconstrutivismo, e novamente a sua escrita desperta-nos humores favoráveis em linha com os tais propósitos que nos fanatizam. Pura maldade nossa — o termo seria dele —, aproveitamos o que do seu texto no importa, às relações de poder, descartaremos o restante. Scruton permite-nos frentes habituais: academia, intelectuais. Na detracção da crítica cultural moderna de Foucault e demais “consciência colectiva da intelligentsia francesa”, salpicados com cheirinhos a feministas, homossexuais, “novos historicistas, os criptomarxistas”, um Antonio Gramsci como “um dos poucos líderes do Partido Comunista que nunca tiveram a oportunidade de matar ninguém” [206], aterrados em Jacques Derrida.

Há quem despreze o resultado final por ser um palavreado pretensioso, que nada diz porque, em grande medida, o autor não tem nada para dizer. (...) Tudo o que surge no texto é introduzido por associação, não é declarado, e assim nenhum compromisso é, verdadeiramente, expresso. Assim que uma ideia é introduzida, logo se encaminha para a sua negação. [177]
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

Baixamos suavemente luzes ambiente just right, distorcemos palavras do texto para novos sentidos: neste ponto vamos para a cama com marxistas-feministas-homossexuais, mesmo se mais prosaicos. De facto, menos literatura, mais pedra de calçada:

Diante do poder, o único caminho integro parece ser a transgressão. Os intelectuais de 1968 perscrutaram o mundo social em busca de indícios do poder, para depois lhe declararem guerra. Cada confluência, cada instituição, cada fragmento da civilização antiga usava, para eles, a insígnia do inimigo. [169-170]
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

Escrutão di-lo com a malícia que lhe gostamos, nós repetimo-lo com outro prazer. Tal como outra das suas sentenças, esta intencionada ao escárnio, que por nós só peca por abandonada num “lúgubre museu” quando a queremos agitada na rua:

Confrontar a teoria significa sermos introduzidos ao equivalente literário de um museu do realismo-socialista, no qual os trabalhadores concretos concertam esforços com os intelectuais concretos, avançando em direção ao futuro, de punhos concretos em riste. Nas profundezas da prosa obscura, a velha mensagem política agita-se e tange: cultura é ideologia, a ideologia é a máscara do poder.
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

OS POSITIVOS: cultura contrariante. Chegados ao comix.

Banda desenhada. Duas vezes se menciona a BD n’A Cultura Moderna, nenhuma delas por mérito próprio. Desta segunda a exposição mais elaborada que lhe podemos extrair, e só por encosto a outra arte: o graffiti. Pura crueldade a nossa, registemos depois dos desconstrutivistas e aquilo do texto, os literários também podem levar esta a mal, vai da nossa parte igual. A ler no entrelinhas:

É em termos semelhantes que devemos entender a iconografia da juventude moderna e, especialmente, os graffiti que desfiguram as nossas cidades. A maior parte dos graffiti são executados num tipo de letra retirado de uma fonte eminentemente pré-literária — a banda desenhada. Além disso, a grande maioria não forma palavras coerentes, tão-pouco mensagens genuínas. São uma espécie de vingança levada a cabo contra a palavra escrita, num gesto que reivindica de forma subversiva o espaço público onde a palavra escrita foi durante muito tempo soberana, antes de ter deixado de o ser, graças à televisão e à publicidade. A falta de interesse artístico dos graffiti é um ato de desafio, uma afirmação de que o saber consagrado na palavra escrita é, hoje, supérfluo. Devemos lembrar-nos que a palavra escrita é o símbolo mais imediato que possuímos da entrada no patamar da vida adulta: é o primeiro obstáculo colocado diante da criança em crescimento; é a fonte primordial do poder dos adultos, assim como do mistério do poder que as mãos dos adultos disseminam e exploram, sem o recurso à força e sem alvoroço, apenas através de signos. Os graffiti são sortilégios lançados contra a palavra escrita, concebidos para neutralizar o seu poder e libertar do seu jugo os espaços que, outrora, foram ocupados por ela. Assim, os graffiti vêm a ser emblemas e símbolos de uma nova forma de afiliação. São os brasões heráldicos do gangue. Os lugares desfigurados pela insígnia do gangue são lugares reclamados ao mundo público. Foram privatizados pelos jovens, convertendo-se no território de um novo tipo de afiliação — a afiliação sem ritos de passagem e sem um compromisso duradouro.
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

Senhores...? Senhores!

Despedimo-nos deste autor que apeia viagem, recomendamos a leitura, agradecemos-lhe os escritos, prosseguiremos com outras leituras por decidir, como sempre deixaremos ao zeitgeist decidir o que se seguirá ("The Decline of the West" 1918 do Oswald Manuel Arnold Gottfried Spengler, talvez?). Como todos antes e depois não rogamos julgamentos de maior, temos para nós que até entre o mais grunho dos suínos encontraremos uma pérola a guardar à posteridade, de todos aprendemos e de todos discordamos. Conclusão dual:

a vida ética ainda pode ser recuperada

O amor não é a resposta, mas sim a pergunta, aquilo que nos lança em busca de um sentido num mundo do qual o sentido se elipsou. [199]
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

O que resta, e o que é oferecido ao estudante, é exactamente aquilo que o estudante teria encontrado de qualquer forma. [173]
Roger Scruton in “A Cultura Moderna” 1998

restos