OS POSITIVOS

Os Vampiros

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movieng to a stand still


In the best comic books and graphic novels, movement is the deferred magic that gives the pages their dormant power and dynamism. In the greatest cinema, stillness is the magic to which motion nostalgically, primally aspires to return.
Nigel Andrews, film critic
Comics are made up of frames in motionless sequence, movies of frames in kinetic sequence. The second merely hitches a ride on that human quirk called the persistence of vision. (...) Ingmar Bergman, in his memoirs, commented on the miracle whereby human perception erases the shuttered intervals between frames, annihilating the fact that a large percentage of a watched film is actually complete darkness. (...) In my more brainstorming moments, I wonder if the cinema’s obsession with comic books (apart from their earning power at the box office) does not come from some yearning to un-invent the wheel. Guilty about the perceptual fraud practised on the viewer, the filmmaker longs to revert to the chaste integrity of still frames in sequence.
Ainda o Nigel Andrews, critico de filmes
Cinema was to become the only medium dependent upon the technological revolution of the last two centuries to be admitted into the hallowed halls of art (...) whereas the comics remained for most of their history the point at which "Art" turned her eyes with horror, the point of no return beyond which lies the realm of hopelessly and irredeemably "popular" culture.
Luca Somigli

Mas voltando ao Filipe Melo e Juan Cavia,

Na apreciação que se segue não nos demoramos pelo texto da obra. Poderíamos. Poderíamos mesmo demorar-nos em várias considerações — particularmente derivadas pela (in)conclusão final que, como todas, sempre, nos afiguraram-se como um opt-out do argumento daqueles que depois de exporem a sua ideia motora apercebem-se que esta não tem em si qualidades suficientes para concluir coisa alguma. Ou, se quiserem, mil e uma outras histórias seriam possíveis com esse mesmo fim, pelo que em si não é claramente o único final possível, e nada deve à história que se acaba de contar. Mas não faremos essa apreciação porque devemos julgar uma obra pelos propósitos que lhe são inerentes, e esta, quer pelas competências profissionais conhecidas dos seus autores como da ambição evidente que ressalta da sua leitura, deve ser avaliada num outro plano: a sua relação ao Cinema.

Rapidamente — e socorro-me essencialmente de um paper sobre remakes e incompatibilidade de ontologias visuais, não só porque o título nos pareceu por demais apropriado, mas igualmente porque de imediato o subtítulo ("a problemática adaptação de imagens desenhadas") (*) encerrou qualquer dúvida que tivéssemos — acompanhem-nos na nossa lógica:

*) LEFÈVRE, PASCAL. "INCOMPATIBLE VISUAL ONTOLOGIES?: THE PROBLEMATIC ADAPTATION OF DRAWN IMAGES." Film and Comic Books. Ed. IAN GORDON, MARK JANCOVICH, and MATTHEW P. MCALLISTER. By Timothy P. Barnard, Michael Cohen, Rayna Denison, Martin Flanagan, Sophie Geoffroy-Menoux, Mel Gibson, Kerry Gough, Jonathan Gray, Craig Hight, Derek Johnson, Pascal Lefèvre, Paul M. Malone, Neil Rae, Aldo J. Regalado, Jan Van Der Putten, and David Wilt. U of Mississippi, 2007. 1-12. Web.


I


O cinema e a BD são essencialmente linguagens visuais, e as relações entre ambas objecto de estudo nas mais diferentes áreas. Da sua génese, às diferenças, às semelhanças, às intrincadas soluções que se propuseram para a construção de uma narrativa capaz, quer uma quer a outra se cruzam por diversas vezes a diversos níveis, as demais precisamente pela sua natureza visual: ambos dependem da justaposição de imagens para produzir a ilusão do tempo e do espaço em sequencias capazes de serem interpretadas enquanto tal e destas extrair uma intencionalidade.

A sucessão de frames no Cinema permite-lhe o movimento, a BD socorre-se de outros artifícios para sugerir a mesma progressão, especificamente na relação espacial entre essas imagens. A cadência "linear e irreversível" das imagens no cinema permitem no contraste à sucessão anterior e posterior manipular o sentido desejado (Rollin’ Bart). A BD socorre-se do layout da página para alcançar o seu equivalente: apesar da linearidade das imagens, cada qual na relação com o todo produzem o sentido final da sequencia. Pode-se mesmo considerar que o Cinema é um meio limitado pelo seu absolutismo visual e rigidez de formato quando comparado à miríade de soluções gráficas e estratégias de leitura que a BD permite. Se no Cinema cada frame se segue ao anterior no mesmo espaço e à mesma cadência, na BD cada imagem ocupa o seu próprio lugar e possui uma “duração” própria. Se no Cinema um frame é comparado ao que o antecede e procede, na BD é possível comparar as mais diversas imagens numa página. Essa complexidade acarreta igualmente uma exigência maior na sua leitura: onde o espectador de Cinema se pode permitir a uma experiência passiva, a BD requer uma voluntariedade do leitor para que este aceda a seguir a sequência na sua ordem correcta. Esta complexidade e este nível de cooperação que se exige não existe no Cinema porque o espectador não tem controlo sobre a sucessão de frames, enquanto que o ritmo da BD — ainda que sugerido e influenciado pelo layout das páginas — é determinado em última instância pelo leitor que possui uma liberdade total para decidir a velocidade a que vira as páginas, para que páginas, e o que escolhe ver em cada uma. Se o espectador de cinema não pode voltar atrás no filme sem quebrar a experiência do mesmo, faz parte da experiência de BD que o leitor releia qualquer imagem ou sequência na ordem que lhe apetecer. Se o espectador de cinema não pode parar o filme sem quebrar a ilusão do meio, o leitor de BD pode contemplar uma página ou qualquer um dos seus elementos quanto tempo desejar sem que a natureza da BD seja violada.

Não pretendemos elaborar uma hierarquia de valores entre Cinema e BD mas recordar como estes se aproximam e se afastam, cruzando considerações que se estendem desde as mais óbvias, como as diferenças de produção — obra de uma só pessoa ou processo colaborativo de um pequeno grupo de indivíduos vs. equipa de produção, rodagem e pós-produção com pouco contacto entre si — ao consumo da mesma — o acto isolado da leitura vs. a experiência partilhada do cinema — às diferenças do meio em si que se estendem para lá da sequencia temporal, linear, espacial dos frames e imagens ou seu controlo; pelo meio poderíamos ainda demorarmo-nos pelas diferenças de discurso entre texto e acção — no Cinema mostram-nos, na BD contam-nos — à tão óbvia diferença que separa tão radicalmente o Cinema da banda desenhada que raramente nos lembramos sequer de a abordar: o áudio. O som é um dos mais gritantes (just bein' funny there for a sec...) contrastes que a separam do Cinema justamente por tão paradigmática que é a relação visual entre ambas.

Mas, finalmente, a mais importante distinção que nos interessa aqui abordar: o desenho vs. a imagem real.


II


A opção estilística do desenho é parte fundamental da BD, e uma das suas principais singularidades. Onde o Cinema se baseia na imagem real e fotográfica, a BD assume-se na imagem desenhada, e nas demais vezes prestando — intencionalmente ou não — homenagem à tradição dos seus mais directos antepassados reconhecíveis: a paródia e a caricatura — se não no conteúdo, no estilo — é rara a BD que se paute por um realismo extremo e, pelo contrário, a sua vasta maioria opta por se exprimir por linhas próprias.

A dualidade real/desenho exerce o seu efeito mais evidente na imersão ao meio: se o Cinema não precisa que se negocie nenhum consenso para a criação de um universo reconhecível, na BD novamente se pede a voluntariedade de participar de um jogo de palavras e imagens que são óbvias construções artificiais e muito mais facilmente reconhecíveis como uma ficção mediada. Ao foto-realismo das imagens acresce que o seu próprio aparente movimento contribui para reforçar a sua impressão de real, motivo pelo qual a animação — sequências estáticas de desenhos não realista — , nos parece sujeito às leis da física ainda que não passem de linhas, formas e cores estáticas e sequenciadas.

Mas sobretudo, queremos apontar à BD uma intencionalidade muito diferente da que se produz no Cinema na medida em que o desenho se separa do real: esta apenas expõe o que explicitamente se optou por incluir na imagem, nenhuma linha ou imagem é aleatória ou acidental e requer um gesto e uma intenção explicita para a sua materialização. Nesse sentido, temos que destacar o quanto o desenho é forçosamente mais intencional e deliberado que a imagem real.

Este aspecto é-nos importante e queremos demorar-nos por ele para salientar essa relevância. Citamos:

The form of the drawing influences the manner the viewer will experience and interpret the drawing. A drawn image offers a specific view on reality and the creator's subjectivity of this reality is built into the work, and a fairly obvious part of this work.

Philip Rawson: a well-developt language of marks can convey far more about what it represents than any mere copy of appearences. Good drawing always goes beyond appearences. A good portrait does not necessarily need a perfect imitiation of the individual traits but rather a depiction of essencial aspects.

Gestalt psychologist Rudolf Arnheim claims that the better picture is one that leaves out unnecessary detail and chooses telling characteristics, but also that the relevant facts must be unambiguously conveyed to the eye. This outcome can be obtained by picture elements such as simplicity of shape, orderly grouping, distinction figure and ground, use of lighting and perspective and distortions.

In addition a drawing offers many possibilities. A drawn image can more easily show impossible views (e.g. Escher) or combine various views (as in cubist art), and an artist will not be limited by budgets.

Arnheim suggests that every successful work of art, no matter how stylized and remote from mechanical correctness it may be, conveys the full natural flavor of the object it represent.

A successful artistic solution is so compelling that it looks like the only possible realization of the subject (Arnheim).

An artist not only depicts something, but s/he expresses at the same time a philosophy, a vision — but one rather difficult to verbalize. Every drawing is by its style a visual interpretation of the world, in that it fore-grounds the presence of an enunciator (Christiansen).

"So every drawing style implies a certain interpretation of the reality in visual terms, a particular visual ontology.


III


E que interpretação se permite ao desenho n'Os Vampiros?

Nas palavras de Pedro Moura:

Se o seu estilo caricaturizado e hiperbólico funciona melhor num propósito cómico como Pizzaboy, parece-me algo deslocado aqui. Por vezes, parecem devedoras do catálogo de expressões faciais da Pixar. O desenho, digamos assim, é “suficiente”, representando aquilo que é necessário mostrar na acção, mas por isso mesmo nunca alcança aquele excesso estético que esperamos em abordagens mais desenvoltas.
Os Vampiros

Isabelinho reforça mais sucintamente:

A bonecagem que nos é mostrada é para ser levada a sério? Estamos perante um romance gráfico sobre a guerra colonial ou perante uma animação qualquer da Disney / Pixar? Sejamos sérios, por favor!...
Bonequinhos

Alguns autores (e dai o paper citado, admitimos!) colocam a questão — sobre as inúmeras adaptações de filmes baseados em Comics — nos seguintes moldes: "não se trata de o quanto é fiel ao original, mas o quanto se consegue atenuar as diferenças ao original". No caso de Os Vampiros, estamos obviamente no processo inverso: uma BD que pede descaradamente que seja adaptada para filme. Crê-mos que essa adaptação será pacífica porque Os Vampiros estão já bastante próximos de serem Cinema. Por exclusão do pouco ou nada que arriscam na BD.


Uma nota final:

Entretido com afazeres mais importantes ignoramos o que se passou de relevante da cena bedéfila nacional no ano que termina– algo que tentaremos colmatar com mais uma série de Comics et al. — pelo que a primeira vez que sequer soubemos deste livro foi já em plena Feira do Livro. Ontem fiz uma pequena pesquisa e percebi que a atenção que os media deram ao seu lançamento foi abismal para os padrões habituais. Estou tão fora de sync que quase me sinto bem comigo mesmo :) Segue-se o bolo em cima da cereja:

Eu, no meio de uma banca que nada acusava BD, encontro Os Vampiros e pego nele. “Hum, isto é novo... Pode ser.” A miúda a atender: “logo à tarde eles estarão cá a assinar o livro, pode voltar nessa altura”. Eu, apanhado de surpresa com a sugestão e confiança da rapariga com que o diz. Hesito. Sai-me qualquer coisa...: “Sim, uh, não é preciso, não faz mal”. Ela, ainda bem intencionada e convencida que não a teria ouvido bem “pode voltar à tarde, eles estarão cá a assinar os livros”. Eu, a olhar para ela completamente desarmado pela candura com que o diz. “É, mas só quero mesmo o livro, é isso.” E agora é ela que me olha surpreendida e hesitante.

Cómicos: alguma vez vcs vão parar de me envergonhar?

we do tend to over-explain sometimes...

graus de separação